Pensar Piauí

Um dia sem celular

"Como não teremos um dia sem celular no mundo é preciso estar atento e forte. E cuidado, você pode estar sendo filmado", escreve Miguel Paiva

Foto: DivulgaçãoUm dia sem celular

Por Miguel Paiva, chargista e jornalista, no 247 

Não sei quem se lembra do filme Um Dia sem Mexicanos, dirigido por Sergio Arau lançado em 2004. Imaginava a situação do estado da Califórnia acordar sem mais nenhum mexicano, todos os 14 milhões com origem hispânica que vivem por lá. O pânico e o mistério iniciais cedem espaço para a constatação do quanto eles fazem falta. Estão em todos os setores da sociedade e são parte da população quer queira ou não.

Fiquei imaginando outras variações. No mundo, um dia sem emigrantes, em Portugal, um dia sem brasileiros, na França, um dia sem portugueses e por aí vai até chegar ao Brasil, um dia sem negros, indígenas, quilombolas, pobres e todos os outros que não fazem parte da elite e que por ela são explorados. É uma realidade forte e faz pensar. Mas fui adiante.

Imaginei o mundo em geral e o Brasil em particular vivendo um dia sem celular. Não faz muito tempo que foi inventado e que vivemos sob o olhar onipresente desses aparelhos. Fica fácil lembrar só não fica fácil, talvez, imaginar tudo aquilo que ele impõe, mas também denuncia.

O celular, desde que apareceu e eu lembro bem disso, foi festejado por Bill Gates não como computador portátil, mas como o telefone do futuro. Iria revolucionar as comunicações e foi o que aconteceu. A pior consequência disso foram as fake news, por conta da invenção das ainda piores redes sociais. O povo passou a se comunicar, a não se sentir mais isolado e sozinho, mas sempre abandonado, sobretudo à própria sorte. Ficamos reféns do telemarketing, do tik-tok, do Twitter com passarinho ou não, dos anúncios invasivos, das dancinhas, das imagens dos pets fazendo peraltices, dos joguinhos e dos algoritmos que viraram espiões de nossas intimidades.

Basta pensar em alguma coisa que no minuto seguinte estamos recebendo anúncios nas redes daquilo que pensamos ou sonhamos. O Google virou o Grande Irmão que tudo sabe e tudo resolve. Como num passe de mágica nos resolve qualquer dúvida que possa surgir num bate papo, por exemplo.

Mas o celular a também ajuda. Com ele nada mais fica sem testemunho. Imagens das câmeras mostram os crimes e falcatruas realizados na calada da noit, mas não na do celular. Exageros também acontecem. Pessoas preferem filmar um cidadão morrendo do que ajudá-lo. Mas a polícia passou a ter um vigia constante. Os corruptos também, os adúlteros idem e por aí vai. Nada mais fica escondido. Dinheiro na cueca, joias sendo vendidas ilegalmente, conversar secretas, violências generalizadas, atropelamentos, tentativas de golpe, fuzilamentos, assaltos e encontros furtivos, nada escapa das lentes do aparelhinho. De uma hora para outra você pode ser vítima de um golpe noturno ou de uma mentira inventada que você acaba acreditando porque nem em você próprio dá para confiar.

Mas um dia sem celular pode ser um perigo. Não vamos poder chamar um carro na nossa porta, pedir uma comidinha as 4 da manhã, aplacar a solidão lendo sobre os outros, colecionar “amigos” fictícios no Face, comprar aquela bugiganga que não te serve e não poder denunciar os crimes.

Era onde eu queria chegar. Nos crimes que os celulares revelaram nos últimos tempos. Imagens, gravações, reproduções, prints de conversas escondidas que vieram à tona e acabaram por mostrar a nova cara do crime. Isso foi fundamental e compensa qualquer dancinha a mais que suportamos na telinha. Os bandidos precisam descobrir um novo jeito de agir. As revelações compensam o efeito nocivo das mentiras. Até o Trump está tendo que se virar para escapar do que os celulares revelaram. Bolsonaro deve ir em cana, mas já foi afastado. Seus cúmplices tentam dizer que aquilo que as imagens mostram não é verdade. Inútil. Como não teremos um dia sem celular no mundo é preciso estar atento e forte. E cuidado, você pode estar sendo filmado.

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