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Desabafos de Bonner, coerentes e eficazes, são oportunidade de ouro que Bolsonaro deu à Globo

Revigorado em seu papel histórico, o Jornal Nacional agradece. Até 2022.

Foto: ViomundoWillian Bonner
Willian Bonner

Por Luiz Carlos Azenha, no Viomundo

Para quem não viveu a época, cabe esclarecer: o Jornal Nacional da TV Globo já marcou a hora no Brasil.

Quanto tocava a vinheta, sabíamos que eram oito da noite em ponto, nos longínquos anos 70.

De certa forma, o telejornal que a ditadura militar (1964-1985) escolheu para fazer parte essencial de seu projeto de integração nacional, fornecendo a infraestrutura enquanto Roberto Marinho providenciava o saber, sempre pretendeu ditar os limites de nossa “democracia consentida”.

Se os militares tinham um “compasso moral” da Nação, ele era exibido na Globo, na voz de Cid Moreira e Sergio Chapelin.

A menos que fosse uma epidemia de meningite, a simulação de “confronto” através da qual se eliminavam adversários do regime, o assalto aos cofres públicos na construção da ponte Rio-Niterói.

Estas notícias não cabiam no Jornal Nacional — razão pela qual se tornou famosa a frase que é mais importante o que o JN não noticia do que o que ele noticia.

Durante a ditadura e, mais adiante, no período da abertura política que precedeu a Constituição de 88, o Jornal Nacional era estudado da mesma forma com que especialistas se debruçavam sobre os sinais emitidos nos bastidores do Kremlin para entender o que se passava na fechada União Soviética.

Aqui, o foco era o Jardim Botânico e o humor que contava era o de Roberto Marinho. 

Dá-se nome de “espelho” ao roteiro das reportagens que serão apresentadas ao longo de um telejornal, que deve ter alguma coerência interna.

Porém, vez ou outra o doutor Roberto bagunçava o espelho com as aparições inesperadas de Antonio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza, nomeado duas vezes governador da Bahia pela ditadura e amigo pessoal do dono da Globo.

Frequentemente entrevistado em sua sala de estar em Salvador, ACM não dava em si uma notícia, mas um recado de Marinho ou da própria ditadura a adversários: o limite havia sido ultrapassado e Malvadeza estava pronto para fazer alguma de suas maldades.

De lá para cá o Brasil mudou, o JN mais na aparência.

O telejornal continua sendo uma espécie de “modulador” dos limites do aceitável para o compacto de oligarquias regionais que ainda nos governa (o Centrão é a representação física delas e não é coincidência que existam no Congresso dezenas de parlamentares diretamente associados aos interesses econômicos dos Marinho).

A Globo segue sendo mais que um conglomerado de meios impressos e emissoras de rádio e TV.

Contrata milhares de artistas e intelectuais, promove eventos, gerencia museus — seu poder de determinar os limites do “aceitável” no campo da política e da cultura é imenso.

Para dar um exemplo atual, a Marielle da Globo será a negra favelada feminista que venceu na vida pelo próprio esforço — jamais a socialista interessada em taxar a fortuna e a herança dos Marinho. 

Com o PT no poder, a relação do Jornal Nacional foi peculiar.

 Entre o chamado mensalão e o petrolão, além das tubulações cuspindo dinheiro que o telespectador passou a associar todas as noites às notícias envolvendo o PT, o JN assumiu o papel de carro-chefe da oposição — conforme pregou a presidente da Associação Nacional dos Jornais, Maria Judith Brito, alegando que a oposição a Lula estava “profundamente fragilizada”.

Quatro derrotas eleitorais não tiraram da Globo o papel de cão de guarda da democracia consentida.

Um Conselho Nacional de Jornalistas, nos moldes da OAB e de tantas outras associações de classe — como proposto pelo PT — para fazer valer um conselho de ética na profissão? Não podia.

Cotas para negros em universidades, que tinham o potencial de resultar na formulação de um movimento negro fora do cercadinho cultural da própria Globo? Não podia.

Um encontro nacional de comunicação para debater a legislação arcaica do setor, da qual a Globo tira proveito justamente por ser arcaica e, portanto, inexistente? Não podia.

Com o advento das redes sociais e as profundas mudanças pelas quais passou a mídia, especialmente na última década, o poder do Jornal Nacional foi relativamente esvaziado.

A Globo só emplacou seu candidato nas eleições de 2018 por associação, quando o juiz federal tornado herói Sergio Moro aderiu ao projeto de Jair Bolsonaro.

Todos aqueles fascistas, cujos rostos a emissora hoje escancara no Jornal Nacional diante de milhões de telespectadores, para denunciá-los, já estavam lá durante o processo do impeachment de Dilma Rousseff.

Nas ruas, com as mesmas faixas e palavras de ordem.

Foto: ViomundoManifestação que a Globo não chamou de anti-democrática
Manifestação que a Globo não chamou de anti-democrática

Sim, as manifestações do período do impeachment já reuniam muitas das mesmas pessoas que hoje fazem parte dos encontros “antidemocráticos” e “inconstitucionais” denunciados pelo Jornal Nacional.

Só que, quando Dilma ainda estava no poder, elas eram descritas como “famílias” que chegavam à avenida Paulista para fazer valer seus direitos — por repórteres da Globo que atuavam como animadores de concentrações.

Agora, o desembarque do ministro da casa, Sergio Moro, do governo Bolsonaro, ofereceu à Globo uma oportunidade de renovação do Jornal Nacional que vai além da cenografia.

Com os líderes de oposição trancados em casa e claramente de olho nas eleições de 2022, sobrou para William Bonner o papel de fazer o contraponto humanista a Bolsonaro, em meio a uma pandemia que vai destroçar a economia e desacreditar ainda mais a política.

Bonner agora nos conta, em tom quase confessional, que assim que acabar o telejornal vai vestir a máscara, como aliás vinha fazendo antes de assumir a bancada.

É só por um bocadinho, diz, como se estivesse na sala de nossa casa.

Renata confirma.

Além dos rostos e bocas de desconforto cada vez mais frequentes, o âncora passou a verbalizar o seu desgosto (importante notar aqui que nem uma linha vai ao ar no Jornal Nacional sem aprovação de instâncias superiores).

Bonner faz desabafos.

Não são propriamente uma novidade na História da TV.

Âncoras tradicionais da TV americana, na qual a Globo sempre se mirou, já fizeram o mesmo papel no passado, talvez de forma mais sutil e menos caricatural: Edward Murrow, Walter Cronkite e Dan Rather, para lembrar só de alguns.

Foram elevados, por isso, ao papel de bússola moral dos norte-americanos.

É irônico que, ao eleger a TV Globo como seu principal adversário, agora, Jair Bolsonaro tenha transformado Bonner numa espécie de “consciência da Nação”.

A emissora que ajudou a produzir Bolsonaro pode se descolar dele — como que num passe de mágica.

Os desabafos do âncora, além de coerentes e emocionalmente eficazes, inscrevem-se num novo jeito de fazer TV, mais próximo do telespectador, no molde da linguagem informal do You Tube.

Ironicamente, isso acontece quando os militares estão de volta ao poder, não tão vistosamente como nos anos de chumbo, mas com um claro papel de tutelar Bolsonaro e a “democracia da Globo”. Tudo a ver?

Revigorado em seu papel histórico, o Jornal Nacional agradece. Até 2022.

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