Pensar Piauí

A treta entre os indígenas  Munduruku e Krenak pela supervacânea ABL

Eu tenho a impressão de que a ABL estava caminhando para seu justo destino, o esquecimento, e foi salva pelas redes sociais

Foto: DivulgaçãoMunduruku, Krenak e a ABL
Munduruku, Krenak e a ABL

Por Luis Felipe Miguel, professor, no facebook 

Eu tenho a impressão (só a impressão, mesmo, não tenho elementos para comprovar) de que a Academia Brasileira de Letras estava caminhando para seu justo destino, o esquecimento, e foi salva pelas redes sociais.

De concreto, o que a ABL fez pelo Brasil foi uma reforma ortográfica trágica, cheia de contra-sensos – ops, contrassensos – em nome de uma “unificação” da língua que só afastou ainda mais o português brasileiro escrito daquele praticado nos outros países.

Mas, cada vez que morre um “imortal” – outro contra-senso aí, mas tão corriqueiro que nem percebemos – se abre uma vaga e, com ela, uma treta sobre os candidatos.

Quem deve ocupar a vaga? Uma escritora negra? Um cantor nordestino? Uma atriz idosa?

O incrível é que uma instituição desprovida de função, que desprezou muitos dos maiores escritores do Brasil, com rituais arcaicos e uma fantasia ridícula, torna-se, nesse breve momento (e só nele), símbolo de uma consagração real.

Que consagração há em se tornar colega de Merval Pereira?

Cruzes!

A treta do momento é entre dois escritores indígenas, Daniel Munduruku e Ailton Krenak, ambos disputando a mesma vaga – e agora trocando acusações entre si.

A Folha publicou entrevistas com os dois. Munduruku, que já fora derrotado em candidatura anterior, diz que Krenak havia prometido apoiá-lo. Em vez disso, decidiu concorrer contra ele.

É triste ver um escritor respeitável desfiando elogios a si próprio e chorando as pitangas em público: “Sou da literatura há 30 anos, premiadíssimo, inclusive pela própria ABL. Tenho uma obra vasta, ensino indígenas a escrever. Eu que inventei a literatura indígena, isso não existia, sou pioneiro. Tenho direito adquirido sobre essa vaga e sei que se o Krenak entrar agora, eu não entro nunca mais.”

A entrevista de Krenak ainda é mais constrangedora. Ele parece fingir que a candidatura caiu sobre ele, não que ele foi lá se inscrever: “Fui surpreendido por uma nota no jornal dizendo que a vaga do José Murilo poderia ser ocupada por um indígena, no caso, o Ailton Krenak. Eu estava na aldeia e só soube três dias depois. Fiquei surpreso, eu não pensava nisso.”

Em seguida, faz toda uma mise-en-scène para fingir desprezar a Academia:

O senhor está em campanha para angariar votos?

Não faço campanha nenhuma, tenho mais o que fazer.

O senhor é tido, até agora, como favorito. Caso seja eleito, pretende viver o dia a dia da ABL?

Ainda não conheço os rituais internos da Academia, e acho que é folclore essa história de que há um encontro amigável toda semana em que eles tomam chá.

Não acredita que o chá dos imortais aconteça semanalmente, de fato?

Seria infantil imaginar que senhores que moram longe, como no Maranhão, por exemplo, larguem tudo o que fazem para tomar chá às quintas-feiras. Eu moro a mil quilômetros da ABL, acho que não vão querer me botar uma tornozeleira como essa. Tenho a minha vida, muita coisa para fazer. Talvez fosse até melhor que escolhessem um indígena que circule mais, mas eu não vou fazer campanha para os outros, né?

O senhor não parece muito animado com a possibilidade de entrar para a Academia.

Eu estou incomodado. Como te disse, só soube três dias depois da nota no jornal. Não estava no meu horizonte uma coisa dessas, estou desmarcando um monte de coisas para cumprir as burocracias e demandas da Academia sem sequer fazer parte dela. Não sei se quem já está lá dentro tem tanta demanda, imagino que não.

E, no final, se faz de doido e destrata a repórter por fazer a pergunta óbvia:

Pensa em desistir da candidatura?

Não. Seria molecagem. Eu respeito a Academia e vou até o final, senão nem teria feito a inscrição. Não sei de onde você tirou essa ideia de que uma pessoa que entra na disputa pode desistir, ainda mais sendo o favorito.

A Academia era para ser a glória. No caminho, os candidatos se apequenam. Munduruku e Krenak não precisam disso. Eu acharia mais bacana se proclamassem sua independência, seu desprezo mesmo, por uma instituição supervacânea*, mofada e paroquial.

* Supervacâneo: supérfluo, inútil. Acho que meu vocabulário me credencia a disputar uma vaga na ABL...

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