Política

Venezuela: que posição Lula deve tomar?

O presidente enviou seu assessor especial, Celso Amorim, para acompanhar o processo eleitoral.


Ricardo Stuckert/Presidência da Repúbica Venezuela: que posição Lula deve tomar?
Lula e Maduro

O processo eleitoral na Venezuela sempre traz debates infindáveis à tona e todos os olhos, automaticamente, se viram para o Brasil e Lula. Qual a posição do presidente sobre a eleição? Mais, qual deveria ser a posição de Lula sobre o pleito? Para tratar sobre o assunto, o jornalista Renato Rovai, da Revista Fórum, gravou o editorial “Fala, Rovai”, para abordar o assunto com mais acuidade.

Rovai dá início ao seu comentário partindo da perspectiva de que a construção da esquerda venezuelana se deu de maneira diferente da brasileira. Ainda assim, derrotar a extrema-direita é um princípio que a esquerda não pode abdicar em nenhuma situação.

“O processo venezuelano é diferente do brasileiro do ponto de vista da construção de sua esquerda e do campo progressista. Lula tinha muita proximidade com Chávez, tem menos com Maduro. Mas Lula entende perfeitamente que a vitória da extrema direita sobre Maduro seria muito pior para o povo venezuelano”, afirmou.

Não é uma posição simples, de fato. Afinal, Nicolás Maduro se fez valer de expedientes que o próprio Lula rechaçou quando teve a oportunidade de mudar a Constituição para se reeleger pela terceira vez à presidência do Brasil. Neste momento, aponta o jornalista, Lula precisa de certezas para se posicionar.

Neste sentido, a parcimônia, materializada na ida do assessor para Assuntos Internacionais da Presidência e ex-ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim para acompanhar o processo e sua auditoria, é um passo fundamental.

“O que Lula não quer é ser confundido com alguém que apoie um ditador. E Lula, ao mesmo tempo não acha que Maduro seja um ditador, mas que passou dos limites nesse processo de eleição indefinida, porque Lula foi contra mudar a constituição para se eleger presidente do Brasil pela terceira vez”, disse Rovai.

Desta forma, aponta Rovai, Lula e Maduro não estão brigados, pelo contrário. Na verdade, Lula aguarda a totalidade das informações sobre a lisura do processo eleitoral para assim, tomar uma posição oficial. As coisas não são tão simples como aparentam ser.

Veja aqui a fala do jornalista Renato Rovai.

Agora, veja o texto do professor Luís Felipe Miguel sobre a eleição da Venezuela:

Eleições servem para oferecer uma solução provisória às disputas políticas e promover uma reunificação momentânea em sociedades cindidas por interesses antagônicos – se bem que esse efeito tem diminuído conforme a direita radicaliza seu discurso (aquilo que a Ciência Política e o jornalismo chamam pudicamente de “polarização”).

Eleições contestadas, porém, levam ao resultado oposto. E é difícil acreditar que a vitória de Maduro corresponde mesmo ao resultado das urnas.

Embora o “Poder Eleitoral” conte como um poder independente na Venezuela, o fato é que a Comissão Nacional Eleitoral serve a Maduro. A falta de transparência e as incongruências do anúncio do resultado tornam a reeleição bem duvidosa.

Também não há dúvida, por outro lado, que a oposição gritaria “fraude” em qualquer circunstância.

Em grande parte da esquerda brasileira, a posição padrão é o apoio ao governo da Venezuela. É razoável ver a cobiça pelo petróleo como motor principal da antipatia pelo regime. Donald Trump, um homem sincero, enunciou esse fato francamente.

A retórica anti-imperialista de Chávez despertava simpatia. O cruel embargo econômico, solidariedade. As múltiplas tentativas de desestabilização do regime por parte dos Estados Unidos, repúdio. A demonização da Venezuela pela direita, por vezes de forma absolutamente caricata, revolta (a Folha de S. Paulo, por exemplo, chama Maduro de “ditador”, epíteto que, porém, não aplica nem à família real da Arábia Saudita).

O sucessor de Chávez deu mostras suficientes de que não tinha grande capacidade de liderança ou apelo popular – muitas vezes pareceu mesmo não fazer jus ao próprio sobrenome. Mas manteve a retórica anti-imperialista, enfrentando embargo, tentativas de desestabilização e demonização ainda maiores. Logo, o apoio da esquerda prosseguiu.

De fato, a oposição venezuelana, salvo exceções irrelevantes, aceita alegremente o papel de fantoche dos Estados Unidos. María Corina Machado, seu nome mais importante, que seria a candidata caso não tivesse sido considerada inelegível, é uma ultraliberal que não esconde seus laços com a extrema-direita internacional.
O governo venezuelano, por sua vez, toma a forma de uma estrutura altamente militarizada, que reprime dissidentes e concentra poder e privilégios no círculo dirigente.

É fácil criticar Maduro pelas medidas que tem tomado, que violam as regras da ordem democrática liberal, mas é preciso ver também como a direita tem emparedado o governo com uso de formas bem pouco legítimas de sabotagem, financiadas amplamente pelo imperialismo estadunidense. Sua estratégia parece ser colocar o país à beira de uma guerra civil para forçar o governo a recuar, a fim de evitar o banho de sangue. Não seria a primeira vez, aliás, que a direita latino-americana e seus chefes da América do Norte seguiriam esse caminho.

O fato de que existe uma alternativa ruim (o projeto imperialista para a Venezuela) não torna necessariamente boa a outra opção.

Assim como não é a OTAN ser ruim que torna Putin bom. Não é os Estados Unidos serem ruins que torna boa a Coreia do Norte. Não é Trump ser o que é que limpa a cara de Kamala Harris.

E, sobretudo, não é porque o modelo liberal concorrencial que impera nos países ocidentais é uma pálida realização dos ideais democráticos de igualdade política e soberania popular que o tipo de regime repressivo que impera na Venezuela pode ser chamado de democracia.
Na Venezuela, como em Cuba ou na Nicarágua, os direitos políticos formais são ignorados com a justificativa da necessidade de impedir uma contrarrevolução. Mas essa narrativa não corresponde a uma realidade em que presos políticos se contam às centenas, manifestações pacíficas são reprimidas com severidade e qualquer dissidência é silenciada.

Os excessos repressivos legitimam a narrativa da oposição. As acusações infundadas de “agente do imperialismo” e “sabotador” a qualquer crítico do regime desmoralizam as denúncias reais.

Falta aquele elemento que, segundo o filósofo Claude Lefort, corresponde ao “gesto inaugural” da democracia: o reconhecimento da legitimidade do conflito.

As pessoas podem ter visões de mundo diversas. A democracia lida com essa diversidade. Se qualquer discordância do governo é tratada como traição, então não há democracia.

A eleição seria o momento em que a diversidade de visões de mundo – ou, mais especificamente, de projetos de sociedade – se manifesta formalmente.
Estamos habituados a um padrão muito baixo: a força do dinheiro, a manipulação da informação e as condições sociais e econômicas que condenam muitos à ignorância política, tudo isso faz com que os resultados eleitorais correspondam apenas ritualmente a uma “vontade do povo”.

Ainda assim, a fraude eleitoral – que é, à luz das evidências disponíveis, o que provavelmente aconteceu na Venezuela – representa uma ruptura séria.
Se o regime quer se legitimar por meio do voto, então que respeite as regras do jogo.

Não há nem mesmo um “socialismo” como outra face da moeda. Os dados mostram que, ao fim da primeira década do século XXI, isto é, após também dez anos de governo bolivariano, o setor privado ampliara sua participação na economia venezuelana, o capital se apropriava de uma parcela maior da riqueza nacional e a taxa de exploração do trabalho crescera. O socialismo da Venezuela de Chávez estabeleceu muito mais uma peça de retórica do que um projeto de sociedade em ação.

Embora a palavra esteja em todas as bocas, não vejo um lado a favor da “democracia” neste conflito. A oposição de direita quer simplesmente estabelecer um ambiente institucional mais vulnerável à pressão das elites econômicas. O governo venezuelano responde a isso rompendo com parte do modelo político liberal, sem apresentar uma alternativa de democracia popular mais avançada. E quem pretende criticar o chavismo sem jogar água no monjolo da reação fica numa posição quase impossível.

Cabe à esquerda propor um modelo de democracia que vá além do liberal. Mas deve ir além, não se acomodar com regimes autoritários por simples maniqueísmo, por estarem em oposição aos Estados Unidos.

E democracia e direitos não podem ser considerados detalhes descartáveis – não para a esquerda da qual quero fazer parte.

Não vejo solução fácil para a situação da Venezuela. Maduro não tem liderança, nem jogo de cintura, para reformar o regime por dentro, tornando-o novamente capaz de mobilizar a população em seu favor. E a oposição está completamente hegemonizada por uma direita ultraliberal, curvada aos Estados Unidos e mesmo simpática ao fascismo.

Os desfechos mais prováveis são, infelizmente, uma degeneração ainda mais acelerada do chavismo, levando a uma ditadura pessoal caricata, ou o sucesso de um golpe pró-imperialista.

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