Pensar Piauí

O pé do balcão, a cachaça e uma evocação: tradição do Piauí

O pé do balcão, a cachaça e uma evocação: tradição do Piauí

O  poeta potiguar, François Silvestre, escreveu: "Só é cantador quem traz no peito o cheiro e a cor da sua terra, a marca de sangue dos seus mortos e a certeza de luta dos seus vivos" Vagner Ribeiro é um cantador piauiense que se enquadra na afirmação de Silvestre. Tem se dedicado a estudar nossa gente e interpreta com clareza impar o jeito de ser e a vida do piauiense. Lá em Piripiri - terra natal de Vagner - Evonaldo Andrade, organiza um museu particular da cidade que os piripirienses chamam de capital do mundo. Em seu museu Evonaldo queria exibir cachaças temperadas que são vendidas na quitanda de seu Elias - um cearense que radicou-se em Piripiri e que tornou sua quitanda uma marca da cidade. Vagner, filho de seu Elias, fez a doação de alguns litros e nos brindou com o excelente texto a seguir: Serrana temperada com imbiriba Vagner Ribeiro A cachaça temperada, tradição da quitanda de Seu Elias, da Rua de Cima, em Piripiri, representa uma tradição de muitos negociantes sertanejos, caixeiros viajantes de um sertão andante, guiados por cheias e secas nas soltas do tempo. Produto extraído da cana-de-açúcar moída na serra da Ibiapaba, por isso chamada de serrana, a aguardente é tomada por uma série de evocações, principalmente em loas e versos ditos de rompante, como no repente, ou memorizados no imaginário popular, patrimônio imaterial de variadas memórias, identidades e culturas: Segunda prantei a cana Na terça amanheceu nascendo Na quarta fiz o engenho Na quinta amanheci moendo Na sexta fiz a cachaça No sábado amanheci bebendo. A pinga sai do alambique de forma límpida, incolor. O tempero, geralmente corado com açúcar queimado ao ponto de quem sabe, é diversificado com raspas de pau, raízes medicinais, frutos ou sementes naturais, que em conserva na cachaça, resulta, com fé na retórica propagada pelo vendedor, em uma variedade de temperadas, como se fossem remédios a curar muitas das dores, além de macoronha, reumatismo crônico, este acrescentado com o pó do couro do jacaré queimado, quebra-flecha, retira-flecha, mau-olhado, junta-casal, afasta-casal, bico de papagaio, esporão de galo, dor de ventrusidade, pra não chamar dor de veado... O quitandeiro ainda arremata dizendo que o freguês não paga a receita, só o remédio. Há também as brincadeiras, em geral com tendências machistas, em que os bebedores de cachaça costumam disputar entre si com versos de lodaça: Cachaça é água benta Ela é feita no engenho Quem bebe cachaça é corno Quem vende é corno também Se mandar os corno embora Ói, não vai ficar ninguém. Tantas vezes se repetem os recitais de loas na quitanda que o aprendizado vai-se transmitindo pela convivência. O vendedor vai tocando uma colher na sequência das garrafas de cachaça temperada, a projeção sonora se assemelha a um arpejo em xilofone. Aí ele anuncia: temperada com imbiriba, milome, jitó, velame verdadeiro, pitoco, moleque magro, cabeça do parente, a rapa do chifre do bode preto, tipi verdadeiro tirado nove léguas onde não se escuta o canto do galo, a rapa do dente da velha que morreu na beira do Rio Longá com 114 anos e ainda fazia crochê. Tudo isso, recitado em velocidade rítmica que lembra um rap, repentista ou embolador numa feira do Nordeste: Cachaça, minha cachaça Feita do pau do capucho Bate comigo no chão Bato com ela no bucho. No pé do balcão, quando se encontram o típico quitandeiro e os bebedores numa roda de cachaça, surgem trocas sociais, amizades, compadrios, compartilhamento de contação de história, lembrança e recital de poesia cabocla, além das proposições filosóficas, sobretudo aquelas alcunhadas pela sabedoria popular, gerando reflexão, ampla rede de comunicação, construção de conhecimento e diversão: Se o mundo fosse de rosa E a gente nunca morresse E a mulher carinhosa Que nunca se aborrecesse Se o mar fosse de cachaça Eu queria ser um peixe. Com o copo apontando ao alto, essa é a do santo, uma expressão que evoco desde que me entendi no mundo, na minha convivência como filho de quitandeiro, observando atentamente ao gesto de saudação de respeito e ao mesmo tempo de intimidade do freguês na quitanda com relação ao sagrado. A cena lembra o que fazem os caretas tirando reis, quando recitam versos na tentativa de impressionar o dono da casa e conseguir pagamento pela performance do reisado. No universo da quitanda, o palavreado com ritmo e rima pode funcionar como código criativo ao pechinchar uma cachaça: Fui ontem pra voltar anteontem Mas como não pude vir Estou chegando agora Você vai me desculpar Porque foi minha demora Passei lá no pé da serra Onde o fogo labora Casa da Maria Neve Que é mãe do Luis Dora Ela mandou lhe dizer Que pague uma pra mim agora. Nesse sentido, o bebedor tenta prender a atenção do espectador presente e dele obter como prêmio uma oferta de bebida sem parecer peditório inconveniente. No verso também se evidencia, misturando mística e brincadeira, uma ação mundana sob a autorização do sagrado, como um pedido de licença para beber: Cachaça é moça branca Filha de um homem de bem Bebe o rico e bebe o pobre Bebe quem tem seu vintém E o padre na hora da missa Bebe o vinho dele também. São muitos os exemplos de falas, como se fossem rituais de orações, mediação profano-religiosa, uma espécie de licença recorrida à poesia anônima e popular versada relacionados com a cachaça: A cachaça a Deus do Céu Tem o poder de empatar Porque se Deus dá juízo Cachaça pode tirar. Cachaça alma de Cristo Sangue do satanás Setenta capeta junto Não faz o que ela faz Que a gente puxa pra frente E ela pra frente e pra trás. A bebida de cabra, como registrou Câmara Cascudo, precisa ser apreciada com moderação, sem se perder o domínio para ela. Só assim se justifica o brasileiro ser considerado devoto da cachaça, mas sem ser cachaceiro.

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