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O Encontro de Folguedos do Piauí e a espetacularização das tradições populares

O Encontro de Folguedos do Piauí e a espetacularização das tradições populares

Foto: CCOMFolguedos
Folguedos

Por Jairo Gomes Araújo, sociólogo

É sabido que a origem das festas juninas antecede a era cristã, de quando, na Europa, eram realizadas festividades pagãs na passagem da primavera para o verão, no momento em que ocorre o solstício de verão, marcando o dia mais longo do ano. Vários povos da antiguidade (celtas, nórdicos, egípcios, hebreus) aproveitavam a ocasião para organizar rituais que pediam fartura nas colheitas. Aliás, a palavra folguedos deriva de folgas, momentos em que ocorriam as brincadeiras e, como a igreja não conseguia vencer as manifestações pagãs, por estratégia, decidiu cristianizá-las, instituindo dias de homenagens aos três santos do mesmo mês: Santo Antônio (13 de junho), São João (dia 24) e São Pedro (dia 29), mantendo a tradição de forma ressignificada. Com os portugueses, elas chegaram ao Brasil. Aqui, coincidentemente, os nativos, ainda antes da invasão portuguesa, também faziam, no mês de junho, rituais relacionadas ao alimento, à agricultura e à vida. Após, somado à forte cultura africana, com os negros sequestrados de várias partes daquele continente, produz-se o sincretismo característico da rica cultura brasileira que formata esta nação. Pois bem, as Festas Juninas, os folguedos, como até hoje vemos, data daquela época, transmitindo crenças e rituais, mas, especialmente, certificando nossa trajetória histórica.

Dito isso, parto para o que motiva essa resenha e que me incomoda desde o acontecido: a mudança de tempo sofrida pelo Encontro Nacional de Folguedos do Piauí, produzido há 43 anos pelo governo do Estado, observando que a transferência de data leva toda a nomenclatura do evento, pois está mantido o título de “Encontro Nacional de Folguedos”. Ora, se os folguedos revelam toda a história dita acima, estando suas manifestações caracterizadas no campo do imaterial, do intangível, é a história com todos os seus elementos que os fazem ser o que são. Vamos imaginar as pesquisas da Serra da Capivara, com suas datações, seu reconhecimento científico mundial sendo, sem pudor, de forma arrogante, ignoradas; também ignorada toda a relevância do que já foi reconhecido; sendo modificadas as posições de artefatos, feitas pichações nas pinturas; não sendo dada a mínima importância para as mudanças de interpretações sobre a presença humana em nossa região e “mandando às favas” as revelações da trajetória humana.

Pois bem, já que me enfronhei nesta seara governista que trata sobre as manifestações populares tradicionais, em sua defesa, e agora me referindo à forma e à programação do Encontro Nacional de Folguedos do Piauí, tenho acordo com as preocupações de José Jorge Carvalho, antropólogo da Universidade de Brasília, que conheci no I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares, realizado pelo Ministério da Cultura, no período dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, durante as presidências do Companheiro Lula. E José Jorge Carvalho, humanista voraz, preocupado com as expressões culturais do povo define a “espetacularização das culturas populares”, sendo esta “uma operação típica da sociedade de massas”, em que um evento, “em geral de caráter ritual ou artístico, preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem”. A espetacularização das tradições populares, reitera Jorge de Carvalho, “implica um movimento de captura, apreensão e mesmo de confinamento”, enquadrando “pela via da forma, um processo cultural que possui sua lógica própria, cara aos sujeitos que o produzem, mas que agora terá seu sentido geral redirigido para fins de entreter um sujeito consumidor dissociado do processo criador daquela tradição”. Carvalho compara o espetáculo moderno à ideia de vivência que Walter Benjamim opunha à ideia de experiência:

Enquanto a experiência aponta para um impacto existencial do indivíduo (de cunho estético, emocional, intelectual, espiritual, afetivo) que ajuda a reconectá-lo com a comunidade a que pertence e com a sua tradição específica, permitindo-lhe um maior enraizamento do seu próprio ser, a vivência é o fenômeno típico do mundo moderno urbano-industrial massificado, caracterizado pela ausência de profundidade histórica e tradicional dos eventos e, consequentemente, por sua superficialidade e fugacidade, tanto no nível individual como no coletivo. Espetacularizar significaria, então, entre outras coisas, dissolver o sentido do que é exibido para deleite do espectador. (I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares – II Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares, p. 84, 2006).

Assim, considero que o Encontro Nacional de Folguedos do Piauí, como uma ação de estado, deve ser pensado no nível da salvaguarda de nossas peculiares manifestações tradicionais, contrariando a homogeneização imposta pela cultura de massa, e em defesa da diversidade cultural. Sendo mais objetivo, em sua forma e programação, por exemplo, que se criem ambientes de convivência e diálogos entre Mestres populares do Piauí e de outros estados, oportunizando, também, suas falas dentro das universidades. Nos palcos e nas comunidades faríamos Rodas de Ciranda com Lia de Itamaracá abraçando Maria da Inglaterra. Veríamos Maracatus nos terreiros de Bumba-meu-boi. O Reisado celebrando o Caboclínio e os Folguedos do Piauí, proclamando a história, festejando a vida. E Teresina (“cidade criança”, “cidade futuro”, “é daqui pra frente”), cidade cujos governantes negam qualquer passado, teria em sua história as marcas trazidas pelo ethos dos que realmente vivem a experiência humana, daria mais significação à experiência do “Outro”.

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