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A palavra de uma professora pública que a despeito das pedras recebidas sempre acorda com esperança de melhorar o mundo pela educação

A palavra de uma professora pública que a despeito das pedras recebidas sempre acorda com esperança de melhorar o mundo pela educação

Foto: GoogleElika Takimoto
Elika Takimoto

Eu: mera professora na era Bolsonaro

Elika Takimoto, em seu blog  Quando tudo isso começou a acontecer, eu fiquei com pena dos meus colegas professores de história, sociologia, filosofia… Afinal, essas disciplinas existem – em essência – para mostrar que tudo o que vemos não está dado, mas sim foi construído dentro de um contexto. E o que pode ser construído também pode ser desconstruído como, por exemplo, a escravidão. Esta foi a minha primeira semana de aula depois que tivemos Bolsonaro eleito. Que o mundo está mudando – e, a meu ver, para pior – estamos todos percebendo. Cortes orçamentários destinados à cultura, carta verde para matar morador de comunidade principalmente de pele preta, perseguição aos LGBTIs, desmoralização dos professores, culto em plenárias, discurso de ódio sendo aplaudido,… Tudo isso está conectado e se intensificando. A gente sabe. O que para mim se mostrou como novidade foi o que eu vi em sala de aula nesse início do ano letivo. Sou professora de física, matéria considerada – pelo senso comum – uma ciência exata dadas as comprovações, os métodos, as previsões, as equações e todo o poder que exerce no mundo. Não sou dessas que acreditam que estejamos diante de verdades incontestáveis com um livro de física aberto. Pelo contrário. Quem teve aula comigo nos últimos anos sabe o quanto eu trabalho para que o aluno duvide de tudo o que é falado e questione o máximo possível qualquer teoria. Pelas dúvidas, crescemos todos. Nas certezas, congelamos nosso raciocínio. Logo na primeira semana, expliquei que iríamos trabalhar de um jeito inusitado com a cinemática. No lugar de exercícios, debateríamos alguns questionamentos de Galileu que foi o primeiro a equacionar um fenômeno físico, a dizer, a queda dos corpos. Em que contexto ele realizou essa façanha? O que o motivou? Galileu estava com a ideia fixa de que a Terra poderia estar em movimento. Para tanto, tinha uma missão nada fácil: convencer o mundo de que o que vemos pode não ser a Realidade. Defender um argumento desse não é nada simples e Galileu escreveu um livro enoooooorme sobre isso com excelentes questões e argumentos. As minhas aulas se baseiam nas inquietações do filósofo para que a juventude perceba a genialidade e, ao mesmo tempo, a humanidade que existe em Galileu. Um aluno terraplanista começou a questionar tudo. Mas não de uma forma que considero saudável para o debate. Veio de forma agressiva dizendo que tudo não passa de opinião e que eu deveria respeitar a dele. Atrás deste jovem, surgiu mais uma galera. Outro aluno, no meio da aula, puxou um papel cheio de contas feitas de forma confusa. Começou a falar de aminoácidos e lendo aquelas contas “me provou” que a teoria do Big Bang e da Evolução não fazem o menor sentido. Foi aplaudido por vários. Veja bem. Nada contra ter ideias diferentes em sala de aula. Isso é absolutamente saudável. O que estou estranhando é a falta de vontade de ouvir e a dificuldade de entender que, no diálogo, crescemos todos. O riso no canto dos lábios de deboche enquanto falo segurando o livro de Galileu se fez presente em meninos e meninas de 14, 15 anos. Nunca havia passado por isso. Outra coisa a observar é que eles estão muito bem informados. É fato. O que não percebem é que informação está longe de ser sinônimo de conhecimento. Por isso, até, adoro dar avaliações em que os alunos podem consultar a internet. Não adianta comer se não conseguir digerir e reter vitaminas. Estar bem informado é uma coisa. Saber pensar sobre o que ouve e lê é algo bem diferente. Enfim, a famosa “turma da lacração” está presente nas aulas de ciências. Lacrar, vale frisar, significa fechar para sempre. Curiosamente, essa expressão foi usada para nomear pessoas que justamente chegaram tirando o lacre: gente que trouxe o debate sobre a hegemonia da cultura eurocêntrica nos livros de história, sobre o consumismo moderno, a urbanização do mundo, a atuação das empresas multinacionais, a corrida desenvolvimentista, a sustentabilidade, sobre a história contada por pensadores brancos, a violência contra as mulheres, o extermínio da juventude negra, o sucesso baseado unicamente na ascensão econômica, enfim, quem se propôs a discutir as desigualdades sociais, o feminismo, a discriminação sexual, entre outros assuntos foi considerado “lacrador”. Hoje, minha gente, eu vi o poderoso lacre. As verdadeiras vítimas de uma poderosa doutrinação que foram tolidas de ouvir seja sobre temas sociopolíticos e históricos seja sobre uma teoria científica. Não estou desanimada. Se eu der as costas para esse muro que se agiganta, morro como educadora. Terei paciência para tentar transpôr essa barreira. Não sinto raiva de nada nem de ninguém. Apenas ando sofrendo de perplexidade e compartilhando com quem quiser me ouvir. Da minha parte, serei o que sempre fui: uma mera professora dessas que vemos em qualquer escola pública que, a despeito de tanta pedra que sempre recebeu dos governantes e, agora, da sociedade, acorda todo dia com aquela esperança de melhorar o mundo pela educação. Esse sonho, nem Bolsonaro vai tirar de mim.

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