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Faculdade tentou impedir médica de se formar após ficar tetraplégica

Após acidente, Daniela Bortman superou barreiras e se tornou líder em saúde ocupacional e referência em inclusão corporativa


Reprodução Faculdade tentou impedir médica de se formar após ficar tetraplégica
Faculdade tentou impedir médica de se formar após ficar tetraplégica

Desde criança, Daniela Bortman se via cercada por hospitais. Filha de médicos e criada em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, ela acompanhava o pai e os irmãos durante os plantões como quem vivia uma aventura. Enquanto os irmãos quase desmaiavam diante do ambiente clínico, Daniela sonhava alto: se via cuidando de pessoas, vestindo jaleco e transformando vidas. “Sempre soube que queria ser médica. Desde pequena, esse era meu sonho.”

Parecia um caminho certo — até que, aos 23 anos, no meio da faculdade de medicina no interior de São Paulo, sofreu um grave acidente de carro que a deixou tetraplégica. A vida parou. O corpo já não respondia aos comandos, os movimentos desapareceram e a depressão tomou conta. “Eu achava que não existia mais luz no fim do túnel.”

Mas seu pai — o mesmo com quem dividia os plantões de infância — acreditava no impossível. Foi ele quem a incentivou, ainda durante a reabilitação, a voltar à universidade. “Eu dizia que ele estava louco. Mas ele insistia: ‘Você quer voltar? Então vá. Não tem motivo para não ir’. E ele estava certo. Eu só não enxergava.”

Durante meses, Daniela passou por reabilitação em Brasília. Aos poucos, retomou a autonomia e a rotina. “Foi uma fase de muita adaptação. Ninguém sabia como lidar comigo e eu não sabia como lidar com meu novo corpo. Desenvolvi uma depressão profunda. Mas entendi que existia vida na cadeira de rodas. Que dava para viver — e bem.”

Com o apoio da família e das amigas — que mantiveram seu quarto intacto na república durante todo o tempo —, ela voltou à faculdade. Mas não sem resistências. Foi necessário entrar com um processo judicial para garantir seu direito de estudar. “Quando resolvi ir, percebi que o mundo não estava preparado para receber uma pessoa como eu. As pessoas queriam que eu ficasse bem, mas na cama. Não sendo médica, muito menos chefe em multinacional.”

Daniela superou também o preconceito interno, talvez o mais difícil. “Dois anos após o acidente, percebi que ainda era a mesma pessoa cheia de sonhos. Mas achava que nada era possível naquela situação. Por falta de informação, por segregação. Tinha preconceito comigo mesma.”

Aos poucos, reconstruiu a carreira. Pensava em seguir na área de Radiologia, mas recebeu um convite inesperado para trabalhar na Atento, gigante do setor de telemarketing. Lá, um líder de saúde e segurança viu nela um potencial que ninguém tinha enxergado. Ela aceitou o desafio e se especializou em Medicina do Trabalho — área da qual nunca mais se afastaria.

O início da virada: da clínica à liderança

Na Atento, Daniela iniciou sua trajetória atendendo como médica e logo passou a liderar projetos de gestão de afastamentos e do FAP (Fator Acidentário de Prevenção), mecanismo que incentiva empresas a investir na saúde dos funcionários. “Conseguimos reduzir dezenas de milhões de reais em custos relacionados a afastamentos. Foi um marco.”

Seu primeiro cargo de liderança veio em 2014, como gestora de Medicina do Trabalho de uma unidade com quatro mil funcionários. Em seguida, passou pela Monsanto, onde começou a desenhar políticas corporativas de saúde. Até que, em abril de 2020 — em plena eclosão da pandemia — chegou à Bayer, multinacional farmacêutica e química, para liderar a área de saúde ocupacional.

Foi ali que viveu o maior case de sucesso da carreira. Em um cenário de emergência global, sem equipe direta e com uma estrutura reduzida, Daniela liderou a resposta da Bayer à pandemia no Brasil. Implantou um sistema eletrônico para rastrear e conter casos de Covid nas unidades da empresa. Como resultado, não houve registros de contaminação interna. “Foi mais eficiente que qualquer MBA. Gerenciar a crise cuidando da saúde de milhares de pessoas foi a maior experiência profissional da minha vida.”

Mesmo sem comandar diretamente um time, liderava por influência. “Era mulher, com deficiência, a mais jovem da equipe, liderando profissionais com uma visão muito autônoma. Precisei conquistar pela competência.”

Durante a pandemia, também participou de reuniões com médicos da Bayer de todo o mundo, palestrou em empresas e orientou familiares sobre os cuidados com o vírus. “Nunca trabalhei tanto, mas também nunca me senti tão realizada.”

Com o fim da emergência sanitária, Daniela coordenou a retomada das atividades e liderou a implementação das diretrizes de saúde e segurança no eSocial — o sistema federal que unifica dados previdenciários, fiscais e trabalhistas. A partir de 2023, passou a fazer parte de um grupo global de três médicos da Bayer encarregado de desenhar a estratégia internacional de saúde corporativa até 2028. “Queremos mostrar que cuidar da saúde dos funcionários não é perfumaria — é estratégia de negócio.”

Hoje, além dos indicadores regulatórios, a Bayer considera saúde e bem-estar dos colaboradores como parte de seus resultados não-financeiros. “A liderança tem impacto direto na saúde mental dos funcionários. Estamos desenhando estratégias para tornar a liderança mais saudável.”

Incluir é mais do que cumprir a lei

Com uma trajetória marcada por rupturas e superações, Daniela é hoje uma das poucas pessoas com deficiência que ocupam cargos de liderança no Brasil. Segundo o IBGE, 70% dos PCDs estão fora do mercado de trabalho. E, apesar de a Lei de Cotas de 1991 obrigar empresas com mais de 100 funcionários a preencher de 2% a 5% de seus postos com pessoas com deficiência, ainda falta muito para a inclusão real. “Inclusão de verdade não é só contratar. É garantir permanência, segurança e um ambiente saudável.”

Na Bayer, onde hoje existem cerca de 300 colaboradores com deficiência, Daniela conta com uma assistente pessoal de enfermagem, que a ajuda com atividades básicas, como se vestir e se alimentar. “Isso não é benevolência da empresa, nem heroísmo da minha parte. É uma relação saudável entre empregada e empregador.”

Ela reforça: não chegou onde está sozinha. “Meu pai sempre acreditou em mim, até quando nem eu mesma acreditava. Meu primeiro chefe foi quem me deu a chance. E meu marido me ajudou a me enxergar de novo, pelos olhos dele.”

Mais do que liderança, exemplo

Hoje, aos 40 anos, Daniela Bortman é head de medicina ocupacional da Bayer e referência em inclusão corporativa. Criou, junto com o marido, uma consultoria de diversidade, e se tornou palestrante sobre temas como equidade, saúde e acessibilidade. “Quero viver muitas experiências diferentes, aprender ainda mais. A limitação motora não me impede de ser uma profissional competente.”

Daniela não gosta de ser vista como exceção. “Gostaria que minha história fosse comum, que não precisasse mais quebrar paradigmas. Que meu lugar não fosse visto como especial, mas como natural.”

Do consultório ao topo de uma multinacional, da cadeira de rodas à liderança global, Daniela Bortman provou, com seu próprio corpo e sua história, que ninguém tem o direito de dizer o que você pode ou não fazer. “Você vai fazer o que você quiser.” E ela fez.

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