Política

Identitarismo é uma imposição do Estado neoliberal

Para o psicanalista Douglas Barros, a extrema direita critica identidades, mas adota uma lógica ultraidentitária baseada em raça, gênero e exclusão


Reprodução Identitarismo é uma imposição do Estado neoliberal
Identitarismo é uma imposição do Estado neoliberal

Por Aquiles Lins, jornalista, no 247

O identitarismo não é uma escolha individual nem um fenômeno espontâneo da cultura, mas uma estratégia de gestão dos conflitos sociais operada pelo Estado neoliberal. Essa é a principal tese defendida pelo psicanalista Douglas Barros no livro O que é identitarismo?, publicado em 2024 pela editora Boitempo. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Barros sustenta que políticas públicas voltadas a minorias não visam propriamente emancipação, mas sim a administração de identidades para evitar rupturas no sistema capitalista contemporâneo.

"Minha tese é que o identitarismo não existe como uma escolha, mas como uma forma impessoal de gestão dos conflitos sociais", afirma. Essa gestão, segundo ele, organiza identidades como categorias fixas e excludentes, o que intensifica divisões e ressentimentos. "Na tentativa de evitar o conflito social, ele entra por outra porta — com o ressentimento diante do acesso aos direitos."

Barros argumenta que, ao institucionalizar essas identidades, o neoliberalismo transforma minorias em alvos da ira de setores precarizados da sociedade, o que favorece a ascensão de líderes autoritários como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Viktor Orbán. "Eles estão imersos nessa lógica ultraidentitária, uma lógica protofascista", diz. Para o psicanalista, a extrema direita se apropria do discurso universalista para promover exclusão racial, de gênero e sexual.

"O outro, na visão deles, vai ser o identitário. O outro é sempre esse fantasma no qual se coloca o reflexo detestável do que se é", afirma. E completa: "Os valores universais proclamados pela extrema direita são universais para um pequeno grupo. O grupo branco, patriarcal, heteronormativo."

Na esquerda, há quem negue a existência do identitarismo, vendo nele apenas um espantalho criado pela direita. Barros contesta: "Existe, né? Tanto que se fala dele." Ele sustenta que o identitarismo surge como resposta à crise do trabalho fordista e à nova lógica neoliberal de competitividade e individualismo. A perda da solidariedade entre classes deu lugar à fragmentação e à busca por reconhecimento identitário.

A internet, segundo ele, acelerou esse processo, ao criar espaços de pertencimento radicalizados. "Todo mundo quer uma identidade. É muito curioso como mesmo um laudo médico se torna hoje uma identidade. Talvez tenha sido o que nos restou."

Essa lógica, diz Barros, atravessa inclusive os partidos políticos. "Candidatos que representam minorias se tornaram um produto na prateleira", afirma. E embora essa representação seja necessária, ela também é engolida pelas exigências de um sistema institucional moldado pela extrema direita. "Quem impõe a política hoje é a extrema direita. Eles impõem o conflito, forçam os limites da institucionalidade."

Quanto à possibilidade de superação do identitarismo, o psicanalista adota um tom cético, mas não resignado. "No horizonte ser realista é não enxergar saídas. Mas a história é muito mais dinâmica do que as formas que temos de avaliá-la", diz. Para ele, a retomada da política como espaço legítimo de conflito — não como guerra cultural — é o caminho possível. "Dizer que a vida não precisa ser só isso talvez seja uma das formas de recolocar o nosso campo no horizonte da política."

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