60 anos do golpe de 1964
O nome do regime político instaurado após o golpe militar é um só: ditadura
Por Luis Felipe Miguel, professor, no facebook
Em 1945, o Brasil iniciou a primeira experiência de regime democrático de sua história. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado, com a derrota do nazifascismo, então a democracia era a palavra de ordem.
Na Europa Ocidental, a democracia liberal foi uma conquista da classe trabalhadora. Ainda que dentro da ordem capitalista, eram criados mecanismos que garantiam algum grau de participação das massas no processo decisório. Os interesses dos grupos dominados tinham, assim, instrumentos para se fazerem ouvir e para serem levados em conta, mesmo que apenas na forma de concessões, nos processos de tomada de decisão
Em países periféricos como o Brasil, porém, a democracia era vista como uma forma de dominação já testada, que teria como principal mérito reduzir os custos da manutenção da ordem. Importamos nossas instituições dos modelos dos países do Norte com a esperança, de nossas classes dominantes, de que servissem mais à perpetuação de seu poder do que à emancipação.
Mas a democracia tem um caráter pedagógico e o eleitorado aprendeu a consagrar candidaturas que, em graus diversos, respondiam a seus interesses fundamentais: desenvolvimento econômico, extensão de direitos, reforço da soberania nacional, redução da desigualdade. Mesmo quando a direita foi capaz de emplacar seu candidato presidencial em 1960, foi um demagogo errático, Jânio Quadros, que nem de longe encarnava sem ruídos o programa da burguesia e do imperialismo.
Foi uma experiência democrática tumultuada. A cassação do registro do Partido Comunista, em 1947, já sinalizou seus limites. Tentativas de golpe, com participação militar, eram constantes: para impedir a candidatura de Getúlio, para impedir a posse de Getúlio, para derrubar Getúlio (culminando em seu suicídio), para melar as eleições, para impedir a posse de JK, para derrubar JK...
Quando Jânio renunciou, em sua própria tentativa frustrada de golpe, a direita quis vetar a posse do vice, João Goulart. O golpe de 1961 chegou a uma “solução de compromisso”, o parlamentarismo, que implicava mudar as regras em meio ao jogo e reduzir os poderes do novo presidente – lembrando que as eleições para vice eram independentes e a vontade popular colocou Jango no cargo sem vinculação com Jânio.
Com poderes recompostos após a vitória do presidencialismo no plebiscito de 1963, Jango iniciou um programa de reformas modernizantes, que visavam transformar o Brasil num país capitalista menos atrasado. Incluíam reforma agrária, reforma educacional democratizadora, controle da remessa de lucros das multinacionais para o exterior.
A agitação da direita crescia, capitaneada pela mídia e por organizações fartamente financiadas pela burguesia e pelos Estados Unidos – os institutos IPÊS e IBAD, que eram o Instituto Millenium e a Brasil Paralelo da época. Num país ainda quase uniformemente católico, eram padres e bispos que agitavam o fantasma do “comunismo” e organizavam as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”.
No dia 1º de abril de 1964, o golpe foi desferido. Blindados tomaram conta de Brasília e o “dispositivo militar” que deveria proteger o mandato legítimo de Jango mostrou-se inútil, para não dizer inexistente. Obediente, o Congresso declarou – mentirosamente – a vacância da presidência e deu o cargo ao marechal Castello Branco, um entreguista autoritário com desprezo pelo povo. O Brasil encerrava seu breve experimento democrático e ingressava em uma ditadura que duraria mais de duas décadas.
O nome do regime político instaurado após o golpe militar é um só: ditadura.
No tempo em que apoiar abertamente a ditadura não tinha virado modinha, seus defensores gostavam de dizer que ela não tinha sido tão ruim. “Ditabranda”, chegou a falar a Folha de S. Paulo.
(A Folha se notabilizou por emprestar veículos para operações de perseguição a opositores do regime. Até hoje, o jornal “em defesa da democracia” não se desculpou pelo apoio à repressão.)
Não é verdade. A ditadura silenciou, perseguiu, exilou, baniu, prendeu, torturou e matou seus opositores. Milhares de brasileiros foram suas vítimas. O crime que cometeram? Discordar dos generais no poder, sonhar com um país diferente.
Mais de 8 mil indígenas foram mortos pela ditadura. Tortura, prisões arbitrárias, trabalho escravo e proibição da fala da língua materna eram correntes na relação do regime com os povos indígenas.
Também não é correto dizer que só se tornou ditadura “de verdade” após o AI-5, em 1968. Desde o início, as violências estiveram presentes.
(Se for necessário um exemplo: Logo após o golpe, o lendário líder comunista Gregório Bezerra foi torturado em público, nas ruas do Recife.)
Os expurgos no funcionalismo começaram no dia seguinte ao golpe, nas Forças Armadas. Todos os oficiais legalistas – aqueles que defendiam a obediência à Constituição e foram o golpe – foram expulsos. Mas também no Judiciário, no Itamarati, na educação, no serviço civil em geral foram eliminados muitos daqueles considerados excessivamente democratas, críticos e independentes.
A Universidade de Brasília, recém-instituída e com um projeto inovador de ensino, foi uma das grandes vítimas da ditadura. Em 1965, 80% dos professores haviam sido demitidos ou se demitiram em solidariedade aos colegas.
A censura à imprensa e às artes foi rigorosa. Tratava-se de expurgar o pensamento crítico e também de impedir a denúncia dos malfeitos do regime. A lenda de que “não havia corrupção” na ditadura (quando na verdade foi um dos períodos mais corruptos de nossa história) é um dos frutos da censura.
A repressão na educação fazia parte do mesmo esforço de cerceamento do pensamento crítico. A ditadura fez o que pôde para destruir a escola pública, contribuindo para criar a indústria do ensino pago no país. Informantes infiltrados nas universidades impediam a livre discussão acadêmica. O famigerado decreto 477, em 1969, criminalizou a discussão política entre os estudantes.
A política econômica – que gerou o propagandeado “milagre” – era baseada no aumento da taxa de exploração. Salários baixos, condições de trabalho inseguras e desrespeito aos direitos eram garantidos com o silenciamento dos sindicatos, sob risco de intervenção cada vez que ousavam defender os trabalhadores.
Uma astúcia da ditadura empresarial-militar foi manter um simulacro de competição eleitoral. Tinha eleição, embora não para os cargos mais importantes, as regras mudassem conforme as conveniências do regime, o debate fosse cerceado, eleitos indesejáveis tivessem seus mandatos cassados discricionariamente, o poder legislativo pudesse ser fechado quando os generais achavam conveniente, boa parte da legislação fosse imposta na forma de medidas de exceção.
O simulacro de democracia não apenas servia a fins de propaganda como dava ao regime um instrumento para medir o ânimo da população. O resultado foi que, após os mais de 20 anos de regime autoritário, o Brasil se encontrava com um novo sistema partidário e uma nova elite política – que se havia acostumado agir sob tutela de poderes mais fortes.
Uma parte das dificuldades da nossa transição se explica por isso.
O Brasil viveu uma transição difícil para a democracia. Foi bem uma década de “descompressão” lenta e gradual, em que os donos do poder buscaram, aniquilar seus últimos inimigos antes de permitir a volta de uma democracia competitiva. Para cúmulo do azar, aquele que deveria conduzir a redemocratização – Tancredo Neves, um oposicionista moderado, mas democrata – morreu antes de assumir a presidência.
Os militares negociaram, em condição de força e garantiram muito do que queriam: impunidade, recursos de poder, privilégios, mordomias. Décadas de Constituição democrática não foram capazes de criar um oficialato disposto a respeitar a lei e o poder civil.
O imperialismo estadunidense e muitos setores da burguesia local a ele associada queriam o fim da ditadura, mas – como sempre – para impor uma ordem de dominação que fosse mais limpa sem deixar de ser segura. A necessidade de contenção da pressão popular era o limite da ordem democrática que eles desejavam.
A luta contra a ditadura uniu uma pauta política (eleições direitas, liberdades democráticas) a uma agenda social e econômica (pelo poder de compra dos salários, contra a miséria, contra as desigualdades). Mas a transição devia se concentrar só na construção de instituições formalmente democráticas.
As classes médias temem mais o progresso dos mais pobres, que diminuiria sua distância em relação a elas, do que sonham com a melhoria de suas próprias condições. Por isso, estão disponíveis para servir de massa de manobra da direita e são vulneráveis ao discurso mais retrógrado.
Em suma, as classes dominantes brasileiras e os setores que nelas se espelham têm alergia à igualdade. Qualquer medida que reduza o padrão aberrante de desigualdade que vigora no país enfrenta sua oposição feroz.
Os governos do PT, cientes do poder de veto dos grupos poderosos, buscaram um caminho de máxima prudência. Seu programa era muito mais retrancado do que, por exemplo, as “reformas de base” de João Goulart. Tratava-se de erradicar a fome sem enfrentar os privilégios. Ainda assim, as classes dominantes julgaram que alguns limites estavam sendo ultrapassados e que era necessário encerrar a experiência petista.
A Operação Lava Jato nasceu com a missão de impedir a reeleição de Dilma – para liquidar o ciclo petista com jogo sujo, mas por via eleitoral. Mas o povo não fez sua parte.
Dilma foi derrubada quando a direita julgou que não era capaz de vencer no processo eleitoral. Era preciso uma intervenção de força. O golpe disfarçado de impeachment – sem cumprir os requisitos legais para o impedimento da presidente – foi o caminho. Legislativo, Judiciário, policiais, militares, mídia, igrejas, o capital: uma grande coalizão de interesses se formou para virar a mesa.
Tal como em 1964, o propósito era manter o jogo político “nos eixos”. A esquerda devia ser neutralizada. Com a renitente popularidade de Lula complicando o cenário da pretendida legitimação do golpe nas eleições de 2018, foi necessário mais um ato de força, sua prisão ilegal. A sustentação militar da subversão da democracia acabou se desvelando nesse processo.
A vitória de Bolsonaro foi como um “acidente de percurso”. A direita tradicional que liderara o golpe não conseguiu emplacar seu candidato – Alckmin, lembram? – e optou pelo mergulho na barbárie para garantir a continuidade de seu projeto.
O golpe de 2016 foi construído conforme se produziu um consenso, nas classes dominantes. de que era necessário promover retrocessos com urgência. A tentativa de um golpe bolsonarista, que culmina no 8 de janeiro, foi diferente. Um grupo marginal quis se assenhorar do poder com a esperança de que, vitorioso, reuniria de novo aqueles interesses a seu redor, mesmo que tampando o nariz – tal como em 2018.
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