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Uma Escrava Chamada Esperança: assim pregaram uma peça

Quando a desinformação, o improviso e um certo amadorismo são levados em conjunto ao palco, o resultado é uma peça de teatro de Valdson Braga

Foto: ReproduçãoAnálise da peça sobre Esperança Garcia
Análise da peça sobre Esperança Garcia

Por Waldílio Siso, historiador e dramaturgo piauiense 

Esperança Garcia ganhou grande notoriedade entre o público em geral a partir do dossiê produzido pela Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI, presidida por Sueli Rodrigues, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e advogada popular. A personagem foi retratada na peça teatral, “Uma Escrava Chamada Esperança” de Valdson Braga e estreou ontem, 12 de outubro de 2021 às 19h30min, no Theatro 4 de Setembro, em Teresina, Piauí.

Quando a desinformação, o improviso e um certo amadorismo são levados em conjunto ao palco, o resultado é uma peça de teatro de Valdson Braga. Ele explica o que não compreende, mas não se pode negar que ele é corajoso. Sob uma pretensa “homenagem” a essa mulher negra escravizada do século XVIII, que denunciou ao Governador da Província do Piauí, através de uma carta, os maus tratos que ela, seus filhos e outras companheiras sofriam de seu senhor, o enredo se revela um amontoado de improvisos, clichês, frases preconceituosas, desinformação e uma visão demasiadamente ingênua da história e da atual conjuntura. “Eu escravizei-me por que não soube me dá valor [...]” eis uma fala da Esperança de Braga, que escamoteando a história da escravização de negros e negras no Brasil, cria um novo elemento “a auto-escravização” em um enredo que a relação opressor/oprimido é relativizada/amenizada na afirmação “[...] quando brancos e negros se respeitarem o racismo cai por terra [...]”, é como se um médico prescrevesse um remédio sem conhecer o problema e pulando o diagnóstico ou pode ser só ingenuidade mesmo.

Em seguida, o próprio diretor-ator que interpreta um narrador que se apresenta como uma espécie de extensão da voz de Esperança Garcia, ao se referir a esta personagem declama: “[...] ela poderia muito bem ficar na sua zona de conforto, mas ela decidiu lutar pelos seus ideais [...]”, é razoável supor que Braga não compreenda o sentido da expressão “zona de conforto” ou mesmo ainda não tenha entendido o que a personagem representou e o contexto político-histórico-social que ela viveu. Em um outro momento, o autor-diretor-ator aventura-se a falar da relação pai e filho na atualidade e dispara: “[...] quando o aparelho eletrônico toma meu espaço [de pai] eu perco o meu moral [...]”, algo que compreendo como fora do contexto/temática e revelador da compilação grosseira de aforismas desconexos e superficiais na sua dramaturgia tão linear quanto cândida. O autor-diretor-ator-produtor ainda adentra em um tema sensível com um indisfarçável arroubo sexista, declamando imperativamente, [...] tem mulher que precisa de alguém que lhe oprima, mas ela não consegue deixar porque de vez em quando ela se sente amada [...]” e segue “[...] nem valoriza seu corpo... se entrega pra qualquer um [...], ainda se referindo às mulheres.

"Uma Escrava Chamada Esperança” teve como protagonista, Gyselle Soares, teresinense que participou de uma edição do BBB (reality show da Rede Globo). A escalação da referida atriz para interpretar uma mulher negra escravizada foi alvo de protesto de ativistas do movimento negro. As manifestações se estenderam até a porta do teatro instantes antes do início do espetáculo, “A nossa esperança é negra!”, era o grito de agitação dos manifestantes. A resposta da atriz na rede social foi, “posso me sentir de qualquer cor”, já Valdson Braga, afirma em entrevista concedida à uma tv local, “[...] o ator pode ser um objeto, um animal [...], quem discordaria disso?

A questão de fundo, que o artista em questão parece não compreender é que essa liberdade de criação/expressão não nos exime de considerar outros elementos importantes: a arte não se esgota no fazer, não é apenas o produto é também processo, a arte não é apenas a criação e a expressão, é também crítica, estesia, fruição e reflexão. A questão da representatividade étnico-racial na dramaturgia, teledramaturgia e cinema e o debate nas artes cênicas sobre o whitewashing (embranquecimento) não deve ser negligenciado ou ser visto como algo secundário, sobretudo em trabalhos dessa natureza. É, pois, imprescindível que produtores, diretores, encenadores e demais envolvidos se debrucem sobre a dimensão política nos processos de criação artística. Ao abordar uma temática, por mais que exista a melhor das intenções, não estamos isentos de produzir e/ou reproduzir outras formas de violência, segregação, preconceito, racismos, estigmatização etc.

A peça se encerra com uma frase proferida simultaneamente pela dupla de atores, “A alma não tem cor”, o que me fez pensar ser mais uma resposta improvisada aos manifestantes do que algo previamente ensaiado ou que estivesse na proposta inicial do texto, mas isso em si não é o problema. O problema é que essas e outras expressões como as que sugerem a substituição de “consciência negra” por “consciência humana” pode colaborar para a naturalização da escravidão e do racismo e legitimar o mito da democracia racial no Brasil. Se a alma não ter cor, o cárcere tem: é preto! Se a alma não tem cor, a juventude exterminada tem: é preta! Se a alma não tem cor, a massa empobrecida tem: é preta!  Ademais, é importante refletir que quando a igualdade do “somos todos iguais” nos descaracteriza, faz-se urgente que reconheçamos nossas diferenças, parafraseando Boaventura Souza Santos.

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