Pensar Piauí

O mais importante primeiro de maio de nossa história

Na história do Brasil, nenhum movimento político teve a dimensão, a força e a importância da greve e do Primeiro de Maio de 1980 em São Bernardo

Foto: Arquivo Pessoal1º de maio
1º de maio

Por José Salan Barbosa Melo, engenheiro, ex presidente da Eletrobras Piauí em 01/05/2024

Em minha infância, em Buriti Bravo no Maranhão, o 1° de maio era o dia em que os moradores da cidade e da zona rural enfeitavam suas casas com flores, principalmente nas partes externas.  Maio era o “mês das flores e dos ventos gerais”. Para os católicos, o mês de Maria, Nossa Senhora, a Mãe de Jesus. Eram celebradas as rezas nas casas dos devotos que festejavam a Santa com suas novenas em frente aos oratórios.  E, no dia 31, no encerramento da última reza, era preparada uma lauta mesa de café com bolos para o desfrute de todos os presentes.

Já na fase adulta, logo no início, aprendi que o Primeiro de Maio é feriado porque é o dia do Trabalhador e que deveria ser comemorado e lembrado com manifestações e recordações das grandes lutas dos trabalhadores mundo afora.

Morando em Santos, uma cidade operária e de lutas históricas, quando tive minha carteira de trabalho assinada pela primeira vez em 1977, fui estimulado a participar das manifestações do 1° de maio. Nos dois primeiros anos que participei, as manifestações eram pequenas e apenas os militantes apareciam para ouvir os discursos dos dirigentes sindicais, novos e antigos, e para ouvir músicas tocadas por artistas locais. Os mais velhos, já aposentados, eram chamados para contar suas histórias, que eram muitas, desde as greves históricas por melhores condições de trabalho até o combate à ditadura militar passando por prisões torturas.

Nessas ocasiões, ainda prevalecia o medo da repressão policial, pois a ditadura permanecia viva e operante e era comum as reuniões de trabalhadores serem encaradas como atos subversivos. Em 1979, o movimento sindical de Santos, como de resto em todo o país, começava a ser influenciado pelas greves que pipocavam no ABC Paulista. Em São Bernardo, os metalúrgicos estavam mobilizados, pois haviam saído de uma greve de 14 dias e estavam de prontidão para atender ao chamado do sindicato para iniciar outro movimento grevista se fosse necessário. A manifestação do 1° de maio tinha sido grandiosa. Falava-se na época em 100 mil pessoas. Teve a presença de artistas, intelectuais e de membros da igreja católica. Esse ato repercutiu bastante em todo país.

Veio 1980, em fevereiro, a fundação do PT, o partido que procurava aglutinar as forças políticas e populares em apoio ao movimento dos trabalhadores. Agora legalizado, esse partido se insere na luta política de uma forma completamente diferente de tudo que o país conhecera até então.

Os trabalhadores de norte a sul do Brasil se movimentavam para exigir melhores dias. Metalúrgicos, petroleiros, professores, bancários, calçadistas, portuários, coureiros, jornalistas, gráficos e claro, trabalhadores rurais e muitos outros. Onde tivesse uma luta por melhores condições de vida e de trabalho, ali estava presente a militância do PT. Fosse uma greve ou uma luta por moradia, como aquelas que aconteciam nas periferias das grandes cidades, fosse a defesa do meio ambiente em Cubatão, naquele momento uma das cidades mais poluídas do mundo, ou no litoral de São Paulo, em Guaraú, município de Peruíbe SP, para impedir a instalação de uma usina nuclear, pois ali era considerado em um dos lugares de ar mais puro do mundo; ou mesmo na mata amazônica do Acre, com os “empates” feitos pelos seringueiros liderados pelo ambientalista Chico Mendes para enfrentar os grileiros de terras e desmatadores da floresta, ali estava o PT apoiando e fazendo a luta. O partido era, portanto, o resultado e, ao mesmo tempo o fio condutor a ligar esse caldo político e cultural que a sociedade vivia naquele momento.

Depois da histórica greve de 1979, todo o mundo político, sindical e midiático acreditava que os trabalhadores tinham atingido seu ponto máximo de mobilização e de conquista; tinham esticado a corda até o limite em desafio à ditadura e não conseguiria repetir tamanho feito. Previsões erradas, visto que a nova greve aconteceria em 1980, mais forte, mais duradora e, principalmente mais desafiadora. Foram 41 dias de muita tensão e luta política renhida.

A ditadura estava encurralada, e sentiu-se obrigada a reagir com toda sua força. Cassou o mandato sindical e prendeu as principais lideranças da greve, entre elas, a principal liderança do movimento, Luiz Inácio da Silva, o Lula, que além de ser presidente do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, acabara de ser eleito para presidir o PT, fundado apenas um pouco mais de um mês antes. Nesse momento, Lula nascia politicamente para o Brasil e para o mundo.

Os generais de Brasília estavam certos que, com essas medidas quebrariam a espinha dorsal dos sindicatos do ABC, acabariam a greve em andamento e desarticulariam a nascente reorganização dos trabalhadores. Estratégia que não funcionou porque o apoio social e político era muito forte e extrapolava o movimento sindical.

Foi formada uma grande frente popular, com a participação de muitos sindicatos espalhados por todo país; por partidos políticos; por parlamentares que lutavam pela volta da democracia; por uma parte importante da igreja católica, principalmente através das comunidades eclesiais de base e do movimento popular em geral.

No ABC, a organização do apoio à greve passou para os comitês de bairros, uma vez que o sindicato sofreu intervenção do governo e estava sendo administrado por prepostos da ditadura. As assembleias aconteciam na igreja matriz de São Bernardo, com apoio e a participação do bispo Dom Claudio Hummes.

A parte mais importante da organização foi a constituição do Fundo de Greve, que passou a organizar a arrecadação de alimentos para sustentar as famílias metalúrgicas enquanto durasse a greve. Doravante, instrumento fundamental para a luta dos trabalhadores e que permaneceu ativo por dezenas de anos.

Compreendendo a importância daquela greve, organizou-se um movimento nacional para arrecadar fundos e angariar apoio político para os trabalhadores.

Mas, o momento crucial do enfrentamento à ditadura se deu no dia 1° de maio de 1980, quando os generais usaram todos seus aparatos repressivos para impedir qualquer tipo de manifestação em São Bernardo do Campo. Por outro lado, as forças populares também se prepararam e várias caravanas de outras cidades e dos bairros se dirigiram para o palco das lutas dos trabalhadores, que normalmente aconteciam no Paço Municipal ou no Estádio da Vila Euclides, hoje estádio Primeiro de Maio, em São Bernardo. Também foram convidados representantes da igreja católica, artistas, deputados e senadores, entre eles, notáveis, como Ulisses Guimarães e Teotônio Vilela.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo se preparou para uma guerra e reuniu cerca de 10 mil policiais armados até os dentes para impedir qualquer tipo de concentração. Tal qual nos ensinava o “hino da luta” contra a ditadura, a música Caminhando de Geraldo Vandré, “Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição de morrer pela pátria e viver sem razão”.

A prisão do Lula e dos demais sindicalistas, naquele momento, foi um fator mobilizador porque todos sabiam que o esmagamento do movimento seria uma oportunidade para o fortalecimento da ditadura e ela ganharia uma sobrevida, uma vez que o enfrentamento direto com as greves e as manifestações públicas era, na realidade uma medição de forças dos dois lados e quem vencesse essa parada sairia fortalecido.

De minha parte, como já tinha amargado uma frustração por não ter participado do primeiro de maio em São Bernardo no ano anterior, me juntei a alguns companheiros para irmos à manifestação. Saímos bem cedo, mas na entrada de São Bernardo nos deparamos com um grande aparato policial à beira da estrada barrando quem desejasse prosseguir em direção ao centro da cidade. Contavam inclusive com apoio de helicópteros, que a todo momento sobrevoavam próximo onde estávamos. Pensamos em usar outra alternativa, mas não foi possível, uma grande fila se formara atrás de nosso carro e ficamos ali por várias horas até a polícia permitir a passagem.

Nos encontramos com uma massa infindável de pessoas na passeata a caminho da Vila Euclides e nos juntamos ao mar de gente disposta e destemida e, principalmente cheia de razão, pois estavam no caminho certo. “Caminhando e cantando e seguindo a canção”, era o que ouvíamos da multidão; no estádio, ouvia-se também o coro de “Lula, Lula”.... e “Trabalhador unido jamais será vencido”.

Depois, soubemos que a abertura da polícia se deu após ela tentar cercar e reprimir os trabalhadores nas proximidades da Igreja Matriz, distribuindo muita pancada e bombas de gás, na tentativa de impedir qualquer reunião. Mas, não contavam que a quantidade de gente era tanta e a multidão calculada em mais de 150 mil pessoas é que cercou a polícia.

Entraram em cena deputados, senadores e vários interlocutores dos trabalhadores e negociaram o “relaxamento” da repressão policial. E, assim, uma grande passeata saiu do Paço Municipal para Vila Euclides e encheu o estádio até não caber mais gente para a realização do maior ato público contra a ditadura militar até a campanha das Diretas Já. Este, um movimento menos tenso com tom mais festivo.

Na história do Brasil, nenhum movimento político teve a dimensão, a força e a importância da greve e do Primeiro de Maio de 1980 em São Bernardo do Campo. Foi o começo do fim da ditadura militar no Brasil. O ABC paulista passou a ser o centro político e se tornou o principal palco de enfrentamento à ditadura militar, até transbordar para outras paragens através do movimento Diretas Já. E, desde então, não só para mim, mas como para todos os trabalhadores do Brasil, foi demonstrado que a força do trabalhador unido é capaz de desmontar qualquer sistema opressor.

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