Pensar Piauí

Muitas violas para um Brasil plural

De origem portuguesa, viola ganhou diversidade no Brasil e está presente na cultura popular de várias regiões do País

Foto: Freepik, Pixabay e Marcos Santos/USP ImagensA viola se diversificou e ganhou formatos, materiais, sonoridades e funções particulares

Por Luiz Prado, jornal da USP 

Tião Carreiro cantava que sua viola tinha vindo das mãos divinas. E advertia: quem não gosta do instrumento também não gosta de Deus. Já Marcos Valle preferiu exaltar as qualidades da viola nos braços dos oprimidos, lembrando que em noite enluarada do sertão ela é como a espada trazendo esperança de vingança. E muitos anos antes ela já era achegada ao coração e às desilusões amorosas por ninguém menos que Mário de Andrade:

Minha viola gemeu
Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Meu coração me deixou

Viola é uma palavra cujo som evoca não apenas um objeto capaz de produzir sons. Ela simboliza memórias, sentimentos, lugares, pessoas, tradições, modos de ser e de viver. No peito do violeiro, não é só instrumento musical: faz-se expressão de identidade. O ponteio de suas cordas conta histórias e é motor de uma espécie de máquina do tempo que funciona dentro de cada ouvinte.

Mas essa constelação de significados não é seu único pluralismo. Porque, em vez de viola, o mais acertado é falarmos em violas. Uma série de instrumentos com origem comum que, espalhando-se pelo Brasil, ganharam formatos, materiais, sonoridades e funções particulares, refletindo toda a diversidade de gentes e culturas do País.

Origens portuguesas

Em seu livro Cantando a Própria História, o violeiro e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Ivan Vilela conta que a origem das violas pode ser traçada a partir do oud, o alaúde árabe. Este foi o primeiro instrumento de cordas dedilhadas com braço, no qual as notas podiam ser modificadas, introduzido na Europa. Foi do oud que surgiu a guitarra latina e, depois de várias transformações, as violas de mão portuguesas, que somam quase 800 anos de idade.

Foto: Marcos Santos/USP ImagensProfessor Ivan Vilela
Professor Ivan Vilela

Ao se espalhar pelo território português, o instrumento passou a adquirir características singulares em cada região. Assim, no norte do país surgiu a viola braguesa, enquanto no nordeste apareceu a viola amarantina, também chamada de dois corações. Na região central nasceu a viola beiroa e, próximo a Lisboa, a viola toeira. Já no sul, no Alentejo, foi criada a viola campaniça.

Foto: DivulgaçãoViola Campaniça
Viola Campaniça

Tendo seu pico de popularidade durante a era das navegações, nos séculos 15 e 16, as violas portuguesas integraram a produção musical renascentista e foram também um instrumento das camadas populares. Com isso, era natural que embarcassem nas caravelas lusitanas e ganhassem as praias brasileiras. Aqui, o instrumento foi por três séculos o principal acompanhamento dos cantadores e só perdeu espaço para o violão, nos ambientes urbanos, a partir da primeira metade dos 1800. Desse momento em diante, seu uso foi cada vez mais concentrado nas regiões interioranas do País.

Foto: Reprodução/ Musica.comRespectivamente, violas braguesa, toeira e a beiroa
Respectivamente, violas braguesa, toeira e a beiroa

Viola caipira

Para o grande público, falar em viola significa, frequentemente, pensar em apenas uma das variedades que polvilham o território nacional. Trata-se da viola caipira, conhecida também como viola de dez cordas, sertaneja, cabocla ou de arame. Parecida com o violão, para quem vê de longe, mas distinta já no primeiro olhar mais aproximado. Enquanto o primeiro possui costumeiramente seis cordas, não agrupadas (encontrando-se ainda violões com sete ou mais cordas), a viola possui dez cordas de metal agrupadas em cinco pares, existindo ainda variedades de doze cordas, mais raras, também dispostas em cinco ordens. Possui um corpo, um braço e uma mão, na qual as cordas são afinadas. O corpo costuma ser construído com dois tipos de madeiras, sendo a do tampo mais macia que a usada nas laterais e no fundo. Afinações (muitas e variando de região para região) e modos de tocar também a distinguem do violão.

Foto: Marcos Santos/USP ImagensViola caipira
Viola caipira

A viola caipira aparece em uma grande extensão do território nacional, sobretudo em São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Paraná e Tocantins. Como instrumento da cultura popular, esteve e está presente em manifestações tradicionais como a Folia de Reis, a Folia do Divino, a Dança de São Gonçalo, o Cateretê e o Cururu. Além disso, a viola caipira participou do sucesso das duplas caipiras e sertanejas no mercado fonográfico, a partir da década de 1930.

Ao lado do canto duetado, dos temas rurais, das narrativas trágicas, amorosas ou moralizantes e do violão, a viola caipira marcou a carreira de Tonico e Tinoco, Zé Carreiro e Carreirinho, Tião Carreiro e Pardinho, Liu e Léo, Vieira e Vierinha, Pena Branca e Xavantinho e tantas outras duplas que partiram do interior para o sucesso nacional. E ela se destaca ainda hoje em trabalhos de artistas da nova geração sertaneja como João Carreiro, Mayck e Lyan e Lucas Reis e Thácio.

Foto: SpotifyViola caipira destaca o trabalho de duplas sertanejas da antiga e da nova geração
Viola caipira destaca o trabalho de duplas sertanejas da antiga e da nova geração

Mas o fascínio pela viola caipira extrapolou o universo da música de origem rural. Desde meados do século 20, a MPB flerta com o instrumento, encarando-o como símbolo das raízes nacionais e do homem do campo, com seus sofrimentos e sentimentos. Ela aparece como protagonista ou coadjuvante na produção de nomes como Geraldo Vandré e Théo de Barros (Disparada), Edu Lobo e Capinam (Ponteio) e Renato Teixeira e Almir Sater (Um Violeiro Toca). Isso sem falar de gente que dedicou a vida a valorizar a cultura popular e reservou lugar especial à viola nessa empreita, como foi o caso de Inezita Barroso, apresentadora do Viola, Minha Viola, e Rolando Boldrin, o Sr. Brasil.

E, mais recentemente, ela também foi aproximada da música erudita e de concerto, adquirindo ares refinados sem perder as raízes do mundo rural. Desde os anos 1980 cresce o número de músicos, muitos vindos de conservatórios e cursos universitários, que escolhem a viola caipira como meio de expressão, reunindo a sonoridade rude das cordas de aço aos mais variados gêneros do erudito e do popular. Na USP, esse interesse crescente se materializou na existência de dois cursos dedicados ao instrumento. Um deles está sediado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), enquanto o outro pertence à ECA, que batiza o instrumento como “viola brasileira”, participando de um movimento que busca ampliar o imaginário da viola caipira para além de suas origens no campo.

Foto: Marcos Santos/USP ImagensApresentação do grupo de violeiros do campus da USP em Pirassununga (Projeto Viola Caipira)
Apresentação do grupo de violeiros do campus da USP em Pirassununga (Projeto Viola Caipira)

Violas brasileiras, no plural

Mas a viola caipira não é a única viola que merece o sobrenome brasileira. Espalhadas pelo País existem outras que, se não ganharam a fama da caipira, não deixam de ser parte fundamental das manifestações culturais de suas regiões. E elas também vêm despertando interesses para além de suas localidades de origem entre músicos e pesquisadores.

Foto: Artigo Viola Brasileira, qual delas?/Revistas USPViola dinâmica ou repentista
Viola dinâmica ou repentista

É o caso da viola dinâmica ou viola repentista, tipo tradicional de viola no Nordeste, utilizada sobretudo pelos repentistas e cantores do improviso. Também conhecida como viola nordestina, possui várias aberturas em seu tampo, cobertos por telas que guardam amplificadores feitos com cones de alumínio, que aumentam o som e modificam seu timbre, deixando-o mais metálico.

Foto: Artigo Viola Brasileira, qual delas?/Revistas USPViola cocho
Viola cocho

Presente nos Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, a viola de cocho chama a atenção por seu formato. É feita a partir de uma tora de madeira escavada à maneira dos cochos utilizados para armazenar sal para os bois, daí seu nome. É o instrumento central do cururu e do siriri praticados na região. Possui cinco cordas simples, originalmente feitas de tripas, hoje de náilon, e um braço bastante curto se comparado ao das outras violas. Os trastes, que separam as casas do braço, são feitos de barbantes revestidos com cera de abelha. 

Foto: Artigo Viola Brasileira, qual delas?/Revistas USPViola de Buriti
Viola de Buriti

Uma das violas com formato mais original, a viola de buriti surgiu na região do Jalapão, no Estado do Tocantins, e pode ser encontrada também, segundo alguns especialistas, no sul do Maranhão, no Piauí e noroeste de Minas Gerais. Construída de maneira artesanal a partir do talo da palma do buriti, seu corpo tem formato retangular, composto de três partes coladas com um preparado de cera de abelha. Possui quatro ou cinco cordas, feitas de náilon e obtidas a partir de linhas de pesca.

Foto: João Saenger/Artigo Viola Brasileira, qual delas?/Revistas USPViola Caiçara
Viola Caiçara

No Litoral Sul do Estado de São Paulo e no Litoral Norte do Paraná encontra-se a viola caiçara, descendente da viola beiroa portuguesa. Usada em folias do divino e no fandango, também é um instrumento produzido artesanalmente. No Paraná, ela pode receber o nome de viola fandangueira e, em São Paulo, na região de Iguape, é conhecida como viola branca. Uma especificidade da viola caiçara é a presença de uma “meia-corda”, conhecida como “cantadeira”, que não é presa na mão do instrumento, mas em uma peça chamada “periquita” ou “benjamim”, localizada na união do braço com o corpo da viola. 

Foto: João Saenger/Artigo Viola Brasileira, qual delas?/Revistas USPViola Machete
Viola Machete

A viola machete, por sua vez, é típica do Recôncavo Baiano, sendo utilizada no samba de roda, samba de viola e no samba chula. Possui dez cordas de metal organizadas em pares e é o menor instrumento dessa lista.

Foto: Facebook/Max Rosa GuitarsViola de Queluz
Viola de Queluz

Em Minas Gerais é possível encontrar uma variação da viola caipira conhecida como viola de Queluz, nome que identifica sua região de origem, a cidade de Conselheiro Lafaiete, antiga Queluz. Feita em oficinas locais e popular até o início do século 20, essa viola foi perdendo espaço com a chegada da produção do instrumento em escala industrial. Desde 2014, o modo de fazer tradicional da viola de Queluz é patrimônio imaterial do município.

Foto: Facebook/Rio de ViolasViola de Cabaça
Viola de Cabaça

Por fim, mas sem esgotar os tipos de viola que podem ser encontrados no Brasil, existe a viola de cabaça, que, como o nome já adianta, tem o corpo e a caixa de ressonância feitos de cabaça, um fruto aparentado da abóbora.

As possibilidades sonoras de toda essa variedade vêm inspirando músicos a se apropriar das diferentes violas. Em 2022, o violeiro e pesquisador Roberto Corrêa lançou o álbum Concerto para Vaca e Boi, no qual apresenta composições autorais gravadas com seis tipos diferentes de viola: caipira, repentista, de buriti, de cocho, caiçara e machete. Corrêa, que possui uma tese defendida na ECA sobre viola caipira,  é acompanhado no projeto por Gustavo Freccia na viola de gamba, instrumento do Barroco e da Renascença.

André Moraes, que recentemente apresentou uma dissertação na ECA sobre o ensino de viola caipira, é outro violeiro que explora as potencialidades das diferentes violas brasileiras. Ao lado de César Petená, ele vem apresentando o espetáculo Violas Brasileiras, no qual o duo passeia pelo repertório de compositores como Almir Sater, Ivan Vilela, Bambico, Levi Ramiro e Fernando Deghi, acompanhados das violas caipira, dinâmica, de cocho e de buriti.

Foto: Arquivo pessoalAndré Moraes
André Moraes

Moraes também é autor de um artigo no qual problematiza o uso do termo “brasileira” para se referir exclusivamente à viola caipira. Apesar de reconhecer que “caipira” é um adjetivo que hoje não dá conta da diversidade da produção musical feita com o instrumento, o pesquisador aponta que o termo “viola brasileira” traz um problema de classificação e organização para as violas. Como cada uma delas possui características físicas, de linguagem, de contexto social e geográfico diferentes, sendo assim complicado considerá-las um único instrumento, como é possível chamar de brasileira apenas a viola caipira, desconsiderando a “brasilidade”de todas as outras?

“Acredito que ‘viola brasileira’ tem sido usado para para fugir do termo ‘caipira’ que, de certa forma, é um limitador”, comenta Moraes. “O termo é abrangente ao falar das músicas que remetem à roça, ao sítio, à cultura boiadeira, a toda vastidão que é o interior da Paulistânia [região do território nacional sob influência do povoamento paulista]. Mas, para professores, pesquisadores e instrumentistas é um limitador porque, segundo eles, o que fazem já não é tão caipira, mesmo entendendo que bebem dessa fonte”.

De acordo com o pesquisador, hoje podemos encontrar violeiros que tocam rock, pop, xote, frevo, xaxado e diversos outros gêneros. Esses músicos reconhecem o contato com a cultura caipira ou sertaneja mas, ao mesmo tempo, não abrem mão de suas vivências em outros estilos musicais. “A maioria desses instrumentistas mora em regiões urbanas e tiveram, de algum modo, contato com a cultura caipira. Mas o significado desse contato vai ressurgir de um jeito diferente para cada um deles”.

Em termos práticos, ao usar o termo viola caipira essas violeiras e violeiros modernos também enfrentam o risco de serem malcompreendidos pelo público, conta Moraes. Esperando encontrar músicas da vertente caipira, a plateia pode se surpreender com composições instrumentais ou de gêneros que parecem distantes da tradição.

“Eu acredito que o aumento no uso do termo viola brasileira vem disso, desse diálogo com música de outros gêneros como a MPB, o jazz, a música instrumental brasileira”, afirma César Petená, parceiro de Moraes no projeto Violas Brasileiras. “Isso faz com que instrumentistas e professores utilizem o termo afirmando essa possibilidade de se fazer, com a viola, música brasileira no geral”.

O outro lado da questão, segundo Moraes, é que viola brasileira seria um termo genérico e muito abrangente, podendo designar não apenas a viola caipira, mas suas irmãs, como a viola de cocho, de buriti, caiçara, nordestina e as demais. “A viola caipira é brasileira, mas nem toda viola brasileira é caipira”.

Ao chamar a viola caipira de brasileira, violeiros, instrumentistas e compositores encontram uma saída para as limitações do termo. Contudo, conforme aponta o pesquisador, é preciso reconhecer a existência dos outros tipos de viola. “Apesar da viola caipira ter sido muito difundida a partir dos discos e hoje em dia ser empunhada até pelo setor do agronegócio como uma grande representante do campo, existem outras tipos de viola que o público não conhece”.

O mesmo campo, lembra Petená, que também é o local no qual os outros tipos de viola florescem. O que adiciona mais um elemento para a discussão. Como representante do mundo rural, a viola caipira não seria a única, mas estaria localizada geograficamente no território, compartilhando esse papel com suas irmãs de outros rincões.

Mas concentrando-se na viola caipira, Petená pontua ainda que, ao abdicar do termo e substituí-lo por viola brasileira, corre-se o risco de fazer desaparecer grande parte do aspecto cultural ligado ao instrumento.

“Parece que a viola carrega a cultura que foi seu berço. Ela veio de influências europeias, mas ganhou no campo toda sua riqueza, relacionada às festas religiosas e não-religiosas”, pondera o músico. “Não é que essa viola é um instrumento só de música caipira. Ele também está muito presente na cultura do caipira. O problema de não se usar o termo é justamente perder essa representatividade”. 

Para Moraes, a questão ainda não está resolvida e seu artigo serve mais para sugerir o debate do que resolvê-lo. Seja como for, nesse cenário, a depender da diversidade de instrumentos espalhados pelo País e do interesse crescente dos músicos por descobri-los, o clássico brado de Edu Lobo – Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar – ainda será ouvido por muito tempo.

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