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As bases sociais da democracia estão em perigo, diz Sérgio Adorno

As bases sociais da democracia estão em perigo, diz Sérgio Adorno

Aproveitei a passagem do Dia Internacional dos Direitos Humanos para refletir sobre avanços e retrocessos. Como falar em direitos se na maioria das vezes estamos reclamando a falta deles? Se ainda negamos tantos direitos da infância? O vácuo ali estabelecido se sentiu preenchido nesta entrevista do sociólogo Sérgio Adorno ao portal Nex. O sociólogo participa de um documentário lançado neste domingo em São Paulo, de 26 minutos, que se propõe a contar as “conquistas em direitos humanos em São Paulo”.
Sergio Adorno foi coordenador da Cátedra Unesco de Educação para Paz, Direitos Humanos Democracia e Tolerância, uma das organizações responsáveis pela realização do filme. “Se considerarmos os avanços conquistados, não há como deixar de reconhecer retrocessos presentemente”, disse Adorno ao Nexo, nesta entrevista, feita por e-mail. “É inegável reconhecer retrocessos nas políticas de redução das desigualdades e de promoção dos direitos humanos. Não se trata apenas de sensações ou percepções coletivas difusas, aqui e acolá, na mídia impressa e eletrônica e nas conversas cotidianas. Direitos humanos deixaram de comparecer às agendas governamentais, perdendo importância política em praticamente todas as áreas”. Adorno explica na entrevista como esses retrocessos são mensurados e como se expressam no discurso político que deve pautar a eleição presidencial de 2018 no Brasil.
Organizações de direitos humanos têm dito que nós vivemos hoje um período de retrocessos no Brasil. Isso é apenas uma sensação difusa ou é algo mensurável? Que fatos corroboram essa tese?
SERGIO ADORNO Ao menos desde os governos federais Fernando Henrique Cardoso [1995-2003] e [Luiz Inácio] Lula da Silva [2003-2010], houve avanços significativos no domínio dos direitos humanos. Os três Programas Nacionais de Direitos Humanos procuraram enfrentar a desigualdade de direitos entre cidadãos procedentes de diferentes classes sociais, gêneros, geração, raças e etnias, mediante um plano articulado de ações visando tanto proteger os chamados direitos universais – como o direito à vida e o direito à dignidade humana – como também os direitos singulares voltados para as mulheres, para as crianças, para os jovens, para negros, para pessoas que necessitam de cuidados especiais. Esses programas focalizaram sobretudo as desigualdades sociais, expressas nos diferenciais de renda, escolaridade, acesso à saúde e à proteção social, enfim, sobre os direitos que asseguram viver sob condições sociais de existência dignas. Ao mesmo tempo, deram maior visibilidade aos problemas decorrentes da segurança pública, propondo medidas para coibir o uso abusivo da força, para a aplicação universal das leis penais e outras, buscando melhorar as condições de trabalho dos profissionais da área. Se considerarmos os avanços conquistados, não há como deixar de reconhecer retrocessos presentemente. No mesmo sentido, governos estaduais e municipais buscaram, cada um segundo suas possibilidades e condições materiais e humanas, implementar planos regionais e locais. Presentemente, é inegável reconhecer retrocessos nas políticas de redução das desigualdades e de promoção dos direitos humanos. Não se trata apenas de sensações ou percepções coletivas difusas, aqui e acolá, na mídia impressa e eletrônica e nas conversas cotidianas. Direitos humanos deixaram de comparecer às agendas governamentais, perdendo importância política em praticamente todas as áreas de intervenção. Em algumas dessas áreas, os retrocessos têm sido muito agudos, como se pode constatar pelos inúmeros projetos que circulam no Congresso Nacional, entre os quais ameaças à demarcação das terras indígenas, redução da maioridade penal, alterações no Estatuto da Família para defini-la como ‘casamento entre um homem e uma mulher’, flexibilização do Estatuto do Desarmamento, transferência do julgamento dos crimes praticados por policiais no exercício de suas funções dos tribunais civis para os tribunais militares. Em nome de restrições orçamentárias, extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e Direitos Humanos com a consequente suspensão de planos de proteção dos direitos das mulheres, das populações indígenas, das crianças e da população LGBTI. Todos esses retrocessos podem ser mensurados por dados objetivos: cortes nos orçamentos, extinção de órgãos de gestão e implementação de direitos, aumento do número de casos de violência no campo, das mortes praticadas por policiais contra civis suspeitos de cometerem crimes sobretudos nas áreas e regiões de grande concentração de habitações onde preferencialmente moram trabalhadores de baixa renda, o número crescente de casos de estupro inclusive coletivos praticados contra mulheres inclusive crianças e adolescentes.
Importantes autoridades judiciárias, militares e políticas têm dito publicamente que a defesa do que eles chamam de politicamente correto e dos direitos de minorias é algo nocivo e exagerado no Brasil. Como o sr. interpreta essa reação?
SERGIO ADORNO Como se sabe, as sociedades modernas, além de sua complexidade de organização, estão baseadas na divisão social do trabalho, no pluralismo político e na diversidade cultural. A chamada agenda do ‘politicamente correto’, por mais que alguns nela reconheçam uma espécie de austeridade moral exagerada, nasceu em apoio ao respeito incondicional de direitos, independentemente das diferenças de classe, poder, riqueza, gênero, geração, raça ou etnia, procedência regional ou nacional, crença religiosa. Não sem razão, essa agenda propõe rigorosas censuras ao emprego regular de termos e linguagens que possam humilhar, inferiorizar ou degradar identidades de grupos sociais singulares. Ela não está em oposição à agenda dos direitos humanos; ao contrário, possuem ambas muitos pontos de conexão. Por isso também, direitos humanos constituem um dos solos sobre o qual se assentam as democracias modernas. Ora, quando assistimos, preocupados e impassíveis, flagrantes e inquestionáveis regressos no domínio dos direitos humanos, as bases sociais da democracia estão em perigo, em especial o princípio da convivência pacífica em meio às diferenças políticas e ideológicas. Quando isto acontece, polarizações políticas aparecem e as opiniões divergentes surgem como se fossem irreconciliáveis. Nessa espécie de vácuo político, opiniões conservadoras, até mesmo reacionárias, ganham espaço, desacreditando a convivência pacífica entre cidadãos e cidadãs de distintas clivagens socioeconômicas e inclusive atacando princípios em nome de uma espécie de ordem natural entre os sexos, na composição das famílias, nas relações dos seres humanos com suas crenças religiosas. É o que vimos recentemente nas mobilizações conservadoras em torno de exposições artísticas, ou na edição do Plano Nacional da Educação, elaborado pelo Governo Federal, que exclui menções à educação para a igualdade de gênero. Essa cisão entre democracia e direitos humanos deve ser social e politicamente combatida pelas forças progressistas da sociedade civil organizada.
O Brasil é classificado pela Anistia Internacional como um dos países mais perigosos do mundo para defensores de direitos humanos. Ainda assim, o segundo colocado na disputa pela presidência, Jair Bolsonaro, faz sucesso pregando justamente contra os direitos humanos. Como esses fatos se combinam e que consequências eles podem trazer?
SERGIO ADORNO Essa questão é mais complexa do que possa aqui ser desenvolvida. Em primeiro lugar, essa guinada à direita, por assim dizer, é um fenômeno mundial. Basta ver o que está ocorrendo nos Estados Unidos e mesmo na Europa com o avanço de forças reacionárias, mesmo quando os governos eleitos possam ser considerados de centro-dir eita. Portanto, esse candidato [Bolsonaro] não é novidade no cenário mundial do qual o Brasil é parte. Em segundo lugar, seria estranho que, com o perfil do qual ele é portador, viesse a ser defensor ou respeitador dos direitos humanos. O discurso desse candidato é óbvio demais. Quando se fala a seus seguidores, é mesmo provável que a maioria se manifeste contra os direitos humanos por absoluta ignorância do que sejam esses direitos. Entre os segmentos, grupos e classes sociais para os quais direitos humanos representam o que há de mais avançado na civilização ocidental moderna em termos de proteção e garantias, é pouco provável que ele faça sucesso. Ainda assim, nada obsta – como aliás temos visto em outros momentos eleitorais da sociedade brasileira – que pessoas que respeitem direitos humanos venham a votar em Jair Bolsonaro porque elegem outros ângulos de seu perfil. Por exemplo, não gostam de muitas opiniões em relação às mulheres, gays, negros, porém vêem nele um fiador de segurança pública. Na atual conjuntura brasileira e mundial, não há mais a esperada coerência entre o pensar e o agir, entre ideais e a escolha de representantes, os quais, por sua vez, não se sentem mais necessariamente comprometidos em responder ao eleitorado e defender o que propuseram em sua campanhas. Portanto, estamos diante de dilemas políticos muito emblemáticos do futuro das sociedades democráticas. Talvez a curto prazo, há muito pouco o que se possa fazer. A médio e longo prazos, investimentos em educação para os direitos humanos, educação para a paz, tolerância, respeito à dignidade de todos e de cada um em particular podem se traduzir em mudanças de mentalidades na direção da cultura de respeito aos direitos humanos.
Em termos históricos, a defesa dos direitos humanos é fortemente associada ao clamor popular, como na Revolução Francesa (1789), quando o povo reclamava princípios que hoje são dados como direitos inalienáveis. Porém, hoje, a rejeição aos direitos humanos vem muitas vezes das camadas mais populares. Como se deu essa inversão?
SERGIO ADORNO Essa pergunta requer igualmente considerar sua complexidade. É certo que a moderna agenda dos direitos humanos, firmada a partir da Declaração de 1948 e das sucessivas convenções de que a maior parte dos países são signatários constitui herança da Revolução Francesa. Os princípios fundamentais lá estão consignados. No entanto, as mudanças que operaram, em todas as suas dimensões, nas sociedades modernas culminando com esse conjunto que os estudiosos convencionaram nomear de globalização, propuseram fatos novos. Limitemo-nos a dois exemplos. Em primeiro lugar, a grande tradição da teoria política ensinava que a essência da democracia estava assentada na existência de eleições livres e representativas dos diversos interesses sociais e políticos de uma sociedade historicamente determinada. Hoje, sabe-se, que essa condição, apesar de muito importante, não é mais suficiente para garantir as virtudes da democracia como sistema social e regime político. O regime liberal-democrático de representação está em crise, por assim dizer, cada vez mais demandando reflexão a respeito das demais exigências que possibilitem equilíbrio de poderes e equalização de oportunidades. Segundo exemplo, entre a Declaração dos Direitos do Homem (1789), a Declaração dos Direitos Humanos (1948) e as convenções e tratados que se sucederam houve irrefutável multiplicação de direitos e de sujeitos de direito, inclusive os de proteção ambiental que incluem os animais, as florestas, os rios. Portanto, não há mais como ficar retido no tempo e no espaço. Há que se pensar que democracia e direitos humanos se movem entre fronteiras, entre territórios, entre fluxos migratórios, entre culturas e nacionalidades. O importante é pensar as relações, cada vez mais recíprocas entre si, entre direitos humanos e democracia como um acontecimento – no sentido de [Michel] Foucault [filósofo francês] – das sociedades contemporâneas.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/12/10/Quais-os-recuos-nos-direitos-humanos-no-Brasil-segundo-este-especialista
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