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A lógica escravocrata ainda vive

A região da Serra Gaúcha é uma das grandes estrelas entre as marcas brasileiras de vinhos considerados “de ponta”

Foto: Montagem pensarpiauíVinhos e trabalho escravo
Vinhos e trabalho escravo

 

Fórum - O clima, os hábitos culturais e as diferenças sociais fizeram com que o vinho, essa bebida ancestral, ganhasse ares de sofisticação e glamour no Brasil. Consumido por todos os povos e civilizações que viveram e ainda vivem ao longo de toda a extensão do Mar Mediterrâneo, essa bebida não tão popular no gigante tropical, onde a queridinha é a cerveja, ainda assim tem um bom público consumidor, e seus produtores nacionais, concentrados em sua maioria na região Sul, disputam o mercado com rótulos importados da Europa e de países vizinhos, como a Argentina e o Chile.

A região da Serra Gaúcha, onde estão municípios profundamente ligados à produção vinífera, como Bento Gonçalves (RS), é uma das grandes estrelas entre as marcas brasileiras de vinhos considerados “de ponta”, sejam eles tintos, brancos, rosés ou espumantes. E foi justamente de lá que veio uma notícia dantesca nos últimos dias: uma operação realizada pela Polícia Federal (PF), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Polícia Rodoviária Federal (PRF) estourou alojamentos subumanos onde centenas de trabalhadores, muitos de origem nordestina, eram mantidos como verdadeiros cativos, sendo escravizados na colheita das uvas de grandes áreas cultiváveis de renomadas vinícolas, como a Salton, a Aurora e a Garibaldi.

Ao ingressarem no insalubre e abafadiço ‘dormitório’ que mais se assemelhava a um calabouço, os agentes federais encontraram 207 homens em condições absolutamente degradantes. Usavam roupas ensopadas, dormiam em meio à sujeira, tomavam banho frio numa região com noites gélidas, se amontoavam em pequenos cômodos, pagavam taxas para receber os “vales” dos próprios salários e recebiam comida com cara nauseabunda. Mas isso não era tudo. Muitos eram submetidos a pancadas, chicotadas e outras formas de tortura.

O local era mantido pela Fênix Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA, uma empresa responsável por captar mão de obra para a lavoura de uva, de propriedade de Pedro Augusto de Oliveira Santana. Ele já foi dono de uma firma voltada para atividade semelhante, a Oliveira & Santana, que funcionou de 2012 a 2019, e que registrou em seu ‘currículo’ pelo menos 10 autuações por ilegalidades trabalhistas. Santana foi preso em flagrante e ganhou a liberdade após pagar uma fiança de quase R$ 40 mil.

A descoberta da vergonhosa e criminosa rede de aliciamento de homens simples que eram submetidos a um regime de trabalho análogo à escravidão só foi possível após três deles tomarem coragem e levarem o drama que viviam a agentes da PRF. A gota d’água teria sido uma sessão de espancamento, com choques elétricos e spray de pimenta, sofrida por um deles numa determinada noite. O que chama a atenção é que os três eram baianos, assim como os demais trabalhadores que apanhavam e eram humilhados. No macabro alojamento havia empregados de outros locais do Brasil, sobretudo dos estados do Sul, mas eles não sofriam os açoites aos quais esses nordestinos eram submetidos.

“Eles apanhavam bastante. Qualquer coisa que estivesse errada, apanhava. Nós do Sul não apanhávamos”, contou uma das testemunhas, pedindo anonimato, à reportagem do TAB Uol.

Pelo contorno das coisas, fica claro que, além do horrendo crime de escravizar seres humanos, esses capatazes e seus “senhores de engenho” do século XXI nutriam um forte sentimento xenófobo que os direcionava a descarregar toda sua sanha sádica nos cidadãos baianos explorados.

Para piorar tudo, a Câmara da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS), na tentativa de defender as vinícolas diretamente envolvidas no escândalo horrendo (Salton, Aurora e Garibaldi), emitiu uma nota vergonhosa associando a falta de mão de obra para o setor com a existência de programas assistenciais do governo que dão o mínimo de renda aos brasileiros que não têm nada.

“Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”, dizia o inacreditável texto, para terminar de desnudar uma gente mesquinha e que crê plenamente viver ainda no Império.

Em meio à vergonha, o maior de todos os desavergonhados

A Câmara Municipal de Caxias do Sul (RS), tomada pelo furacão gerado pela bombástica notícia que se propagara país afora do trabalho escravo nas vinícolas gaúchas, assim como outras casas legislativas e prefeituras daquela região, virou palco para discursos empolados sobre o tema.

Lá, um vereador tão criminoso quanto os agenciadores e capatazes que açoitavam seres humanos nas masmorras de Bento Gonçalves, resolveu parir uma fala que fez muita gente acreditar que se tratava de uma sessão de incorporação espiritual. Como uma espécie de Barão de Cotegipe “moderno” (um dos cinco senadores que votaram contra a Lei Áurea, em 1888), o bolsonarista Sandro Fantinel (Patriota) partiu para o ataque e defendeu os criminosos escravagistas que exploravam os trabalhadores nas terras da Salton, Aurora e Garibaldi. Cheio de gracinhas e fazendo comparações estúpidas, o vereador ainda proferiu um arsenal de afirmações xenófobas e racistas.

“Não contratem mais aquela gente lá de cima, que só quer saber de viver na praia tocando tambor... Era normal que se fosse ter esse tipo de problema... Todos os agricultores que têm argentinos trabalhando, hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e, no dia de ir embora, ainda agradecem o patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam. Em nenhum lugar do Estado, na agricultura, teve um problema com argentinos. Agora, com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, era normal que se fosse ter esse tipo de problema. Deixem de lado aquele povo que é acostumado com Carnaval e festa para vocês não se incomodarem novamente. Que isso sirva de lição. E vou mais longe: o problema foi tão grave, foi uma escravidão tão grave, que além dos caras voltarem bêbados para o trabalho, teve vários desse mesmo grupo que não quiseram ir embora, e quiseram permanecer na empresa e continuar trabalhando. Se estava tão ruim a escravidão, como que alguns do próprio grupo não quiseram ir embora?”, disse Fantinel, para a incredulidade de qualquer ser humano minimamente civilizado.

Como todo bom covarde, o bolsonarista de discurso pró-escravizadores e antinordestino teve que voltar atrás, gravar vídeo chorando e implorar “por sua família”. Era tarde demais, por unanimidade, a Câmara de Caxias do Sul aprovou a abertura de seu processo de cassação, uma notícia que veio acompanhada de manifestações de repúdio das mais diversas autoridades graúdas da República, como ministros de Estado e até dos governadores do Rio Grande do Sul, seu estado, e da Bahia, estado dos insultados, Eduardo Leite (PSDB) e Jerônimo Rodrigues (PT), respectivamente.

Os campos de uvas gaúchos, que para boa parte das classes dominantes brasileiras, caricatas e jecas em sua essência, é nascedouro de um produto fino e pomposo, carregam também a face do horror. Mas de nada adiante o ‘bico doce’ do freguês, se ele prefere um para um tinto ‘varietal’ ou ‘assemblage’, ou se as ‘notas’ que revelam o ‘terroir’ são de frutos secos, pouco importa. Vinícolas usando mão de obra escrava, expostas ao mundo, são uma vergonha para o Brasil e não podem seguir cometendo um crime repugnante à luz do dia como este revelado na última semana.

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