Pensar Piauí
Sociólogo, Professor aposentado da UFPI

Antonio José Medeiros

Sociólogo, Professor aposentado da UFPI

O discípulo homenageia o Mestre: padre Raimundo José por Antônio José Medeiros

Foto: PensarPiauiO Mestre e o discípulo
O Mestre e o discípulo

 

PADRE RAIMUNDO JOSÉ: UM SÁBIO, UM SANTO

Padre Raimundo José Airemoraes Soares faleceu ontem (07.11.2020), aos 87 anos de idade. Viveu para a Fé, a serviço da Igreja. Um orientador solícito de centenas de pessoas. Um grande professor, um intelectual de sólida formação.

Um Mestre, MEU MESTRE. Mestre no método de trabalho intelectual, mestre na autenticidade dos valores em que acreditava, mestre na integridade do testemunho de vida. Um Mestre educa para a autonomia. Por isso, mesmo que seu discípulo escolha outros caminhos intelectuais, permanece a admiração, o respeito, o Carinho.

Padre Raimundo José, depois do Seminário Menor (antigo ginásio e ensino médio) em Teresina, fez a graduação em Filosofia no Seminário de Olinda, Pernambuco. Continuou seus estudos de filosofia e teologia na Academia Romana de Santo Tomás e na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, Itália. Em Roma, fez estudos pós-graduados no Pontifício Instituto Bíblico. E, tempos depois, fez doutorado em Teologia Pastoral, na Universidade de Montreal, no Canadá.

Sempre manteve uma vida de estudos intensa. Poliglota: dominava espanhol, italiano, francês inglês e alemão, além do latim, grego e hebraico (aprendido em seus estudos bíblicos em Roma). Na época do ataque ao World Center nos EUA, o encontrei folheando uma gramática árabe (é que o alfabeto se parece com o hebraico ou aramaico, não me lembro).

Padre Raimundo José morava no seminário (hoje Edifício Paulo VI), onde estudei por cinco anos. Não era da direção, era professor. Sua biblioteca em formação já era famosa; teve que mudar para um quarto maior porque no anterior já não cabiam mais os livros. Adolescentes, gostávamos de desafiá-lo a dizer onde estava cada livro nas estantes. E ele sabia o exato local. Assinava revistas brasileiras e estrangeiras nas áreas de teologia, filosofia, linguística, pedagogia e ciências humanas. Sua biblioteca hoje é provavelmente a maior biblioteca particular do Piauí, na casa em que depois construiu.

Ficava até altas horas de luz acesa. Mantinha arquivos de aço com milhares de fichas devidamente ordenadas, por assunto e por autor. Nessas fichas estavam as anotações das leituras feitas, os roteiros de textos que escrevia e das palestras que proferia, seus planos de aula e até as notas de encontros em que participava. Nunca conversei com ele sobre como, nos últimos tempos, usava o computador.

Padre Raimundo foi professor no Seminário Menor, no Colégio Diocesano, na Faculdade Católica de Filosofia (FAFI) e depois na UFPI – CCHL, Departamento de Filosofia e depois no Seminário Maior Interdiocesano. Fui seu aluno nessas diversas instituições, exceto o seminário maior.

Consolidou a FAFI como instituição que depois se incorporou à UFPI. A FAFI era um ambiente inovador pedagogicamente; introduziu o ano básico comum a todas as licenciaturas, com disciplinas englobando temas transversais. Liderou uma equipe de professores (quase-colaboradores) e formou uma geração de jovens e mesmo adultos que se motivavam a retomar os estudos. Contou com o respeito de intelectuais laicos, de alunos-futuros professores, de jovens. O professor Diogo José, seu irmão, desempenhou um papel inovador nesse processo.

A FAFI era uma “ilha democrática” em plena ditadura. Lembro que, quando estive preso, o Juiz autorizou que eu fizesse as provas na chamada “segunda época” ou segunda chamada. Fui acompanhado de um policial. Padre Raimundo me recebeu na porte e disse: “no prédio da Faculdade, com meu consentimento, a polícia não entra!”. Tive que voltar; mas no dia seguinte recebi autorização para entrar sem o policial. Também se recusou a fazer portaria me expulsando da Faculdade com base no famigerado Decreto 477, mesmo com a recomendação escrita da Guarnição Federal.

Padre Raimundo José tinha um programa na Rádio Pioneira e escrevia para jornais sua coluna “A Cidade Medita”. Reflexões inspiradas na doutrina cristã, com a abertura a um humanismo integral e fundamentada em seu amplo conhecimento filosófico e linguístico. Brincava inteligentemente com as palavras. Várias dessas crônicas foram editadas em livro. Foram editadas também palestras suas e discursos como paraninfo de diversas turmas da FAFI e da UFPI. Tornou-se membro da Academia Piauiense de Letras, por insistência de vários acadêmicos. Foi também membro do Conselho Estadual de Educação.

Desempenhou várias funções de coordenação e assessoria na Pastoral da Arquidiocese. Assessorou Dom Avelar Brandão Vilela no Concílio Vaticano II, em Roma e nas Assembleias do CELAM – Conselho Episcopal Latino-americano, em Mar del Plata (Argentina) e Medellin (Colômbia), da qual saíram importantes Declarações do Episcopado. Foi assessor da CNBB, inclusive diretor do Instituto Nacional de Pastoral (no Rio de Janeiro e em Brasília). E participou de várias instituições e eventos da Federação Internacional das Universidades Católicas.

Uma pessoa simples, humilde mesmo; uma vida de asceta. Quando eu soube que tinha sido convidado pela segunda vez para ser bispo, brinquei com ele:” Aceite, pois não tem terceiro convite”. Ele apenas riu. Aceitou disputar eleições diretas para reitor da UFPI, por insistência de alunos e professores, apenas para contribuir na luta pela democratização da universidade. Nunca teve ambição de cargos.

Sempre valorizou o trabalho discreto de atendimento individual às pessoas, que buscavam uma palavra lúcida e amiga, com suas angústias, em suas crises, pois via esse trabalho como parte do exercício do seu ministério.

Padre Raimundo José, um grande ser humano. Seu legado permanece. Lembro que no seminário se dizia que cada pessoa, sobretudo, o cristão, deve procurar ser “são, sábio e santo”. A vida do Padre Raimundo José é um exemplo e modelo desse ideal.

OBS: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do pensarpiaui.

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