Pensar Piauí
Sociólogo, Professor aposentado da UFPI

Antonio José Medeiros

Sociólogo, Professor aposentado da UFPI

Esse isolamento faz cada uma com a gente...

Foto: InternetAntônio José e Aldir Blanc
Antônio José e Aldir Blanc

 

Estava sozinho na sala. Deitado no sofá, descansando de duas horas no computador, conferia mais uma rodada de zapps.

Notícia da morte do Aldir Blanc. Tristeza e lembranças mil... E não é que estava postado um vídeo da Elis Regina cantando “O Bêbado e o Equilibrista”. Bateu a emoção e as lágrimas desceram.

Ainda bem que eu estava sozinho. Isolado no isolamento. A Hercília tinha saído para o supermercado; dona Badô (minha sogra) na rede dela no quarto; a Socorro cuidando dos afazeres domésticos; e o Noa (meu neto) com seus pais, Fabrício e Rayssa, no quarto lá em cima.

Lágrimas por quê? Lágrimas por quem? Pelo Aldir? Pela Elis? Era um sentimento inespecífico, e o inespecífico termina sendo universal. Lágrimas por tudo: de tristeza e de tranquilidade; pelo passado, pelo presente e até pelo futuro. Estranho, nem profeta eu sou: mas senti as lágrimas tendo a ver com o futuro da “nossa pátria mãe gentil”; com uma possível “noite no Brasil”, que é “meu Brasil”.

Voltei pro computador, as lágrimas minguando mas demorando a secar. Naveguei pelas músicas do Aldir, algumas velhas conhecidas e outras que hoje ouvi pela primeira vez.

“Resposta ao Tempo”, por exemplo, um diálogo com o Tempo: ele “bate na porta”, “fico sem jeito calado, ele ri; ele zomba do quanto chorei porque sabe passar e eu não sei”. Mas dá a volta por cima: “ele adormece as paixões, eu desperto”; “se rói com inveja de mim (...), como eu morro de amor pra tentar reviver”. Será que minhas lágrimas vieram de paixões (re)despertadas, revividas?

Mas voltemos às velhas conhecidas.

Eu, que tenho a frustação de não ser um bom dançarino, sempre brinquei com o “Dois pra lá, dois pra cá”. E dançar era simplesmente dançar, embalado pela voz da Elis (sempre ela); e dançar era brincar com a parceira dos passos ritmados.

Fiquei confuso: sabia que “Amigo é pra essas coisas” é do Aldir Blanc. Na pesquisada buscando a letra, numa postagem apareceu como do Chico Buarque. Mas no caso, a voz da minha lembrança não era da Elis, era do Paulinho da Viola.

Já para “Mestre Sala dos Mares” a voz da minha lembrança não era nem da Elis nem do Paulinho; era da nossa Rosário Bezerra (que ainda está nos devendo essa gravação), acompanhada pelo Dimas. Toda vez, não aguentava e ia me juntar a eles com minha voz quase sempre desafinada: “Glória aos piratas, às mulatas, às sereias; glória à farofa, à cachaça, às baleias... Glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história, não esquecemos jamais. Salve, o Navegante Negro, que tem por monumento as pedras pisadas no cais”.

Por fim, “O Bêbado e o Equilibrista” que ficou conhecido como o “hino da anistia”. E foi. Lá estão chorando a Dona Maria pelo exílio do amigo Betinho, seu filho e irmão do Henfil e Clarice Herzog, esposa do Vladimir, assassinado sob tortura. E muitas e muitos choraram por “tanta gente que partiu num rabo de foguete”. Sei que Dona Bibi, minha mãe, chorou com saudades quando eu estava no Canadá.

Mas Aldir Blanc se inspirou e/ou quis homenagear Charles Chaplin na figura de Carlitos. Por isso “O Bêbado e o Equilibrista” transcende um período histórico. Na sua bela letra está a “ironia lírica” tão característica de Chaplin. Basta lembrar a máquina engolindo o operário em “Tempos Modernos” ou o Hitler caricato brincando em equilibrar o globo terrestre nas pernas para o ar, em “O Ditador”.

Para Aldir, “o bêbado trajando luto” e “com chapéu coco fazia irreverências mil pra noite do Brasil, meu Brasil”. Nosso Brasil. O lirismo irônico comparece também quando a “lua, tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel”.

Isso em pleno “sufoco louco”, tempo de “uma dor assim pungente”. E essa dor “não há de ser inutilmente”, pois existe esperança. Mas a “esperança equilibrista” que “dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar”.

A esperança é um tema que sempre esteve em minhas reflexões, incorporada em minha visão do mundo. E justamente nessa perspectiva da “esperança equilibrista”.

A esperança é uma virtude cultivada pela tradição bíblica. Mas minha reflexão sobre a esperança vem dos tempos da universidade. O existencialismo e o marxismo eram dominantes no mundo filosófico. E nas duas tradições, a esperança foi tematizada. No existencialismo por Gabriel Marcel com sua filosofia da esperança e no marxismo por Ernst Bloch com seu “princípio Esperança”, que alimenta as utopias. Mesmo na teologia, Moltmann elaborou a teologia da esperança, uma das fontes da teologia da libertação.

Mas, a “esperança equilibrista” se assemelha mais às reflexões de André Malraux, que dialogava com o existencialismo e o marxismo e seu “esperar contra toda esperança” e Emmanuel Mounier, filósofo e líder político católico que na sua filosofia de inspiração personalista (de defesa da dignidade da pessoa), escreveu sobre “a esperança dos desesperados”.

Nessa mesma perspectiva, se situa Gramsci quando diz que se, às vezes, o pessimismo vale para o curto e médio prazo, a visão de longo prazo deve ser sempre otimista; isso é esperança equilibrista. Ou Paulo Freire quando diz que o verbo a conjugar não é o verbo esperar e sim o verbo esperançar, o da esperança ativa.

Pois é, da emoção terminei chegando à razão, misturando os sentimentos com o pensamento. Mas esperança equilibrista é isso: ironia, lirismo, sufoco, irreverência,  amor à mãe gentil, cuidado para não se machucar.

Aldir Blanc soube dar o recado, tão necessário nesses tempos em que noites nos ameaçam. Mas a luz vai brilhar nos viadutos, para além dos túneis.

OBS: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do pensarpiaui.

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