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João de Moura Neto
João de Moura Neto, piauiense, casado, pai de família, engenheiro civil por formação e técnico em telecomunicações da empresa OI Telecomunicações é dirigente do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Piauí. Foi presidente da CUT e é membro da Executiva Municipal do PT de Teresina. Em 2015, o coração de João de Moura se aliviou. Terminou na Justiça Federal um processo onde ele era réu pelo “crime” de botar para funcionar a radio comunitária Primeiro de Maio que na década de 90 existiu na capital do Piauí. O PensarPiauí ouviu João de Moura. A história dos enfrentamentos da classe trabalhadora, a luta por um espaço para falar e ser ouvido (a luta pela democratização da comunicação), o processo judicial e as tensões de tudo isso. O PensarPiauí sintetizou a entrevista numa fala única de João de Moura. Ei-la, aqui:
“O primeiro contato que tive com o tema rádio comunitária foi na reunião para organização da rádio 1º de Maio. Aconteceu em 1996, em reunião na sede da APECEF, e estavam lá sindicalistas históricos aquela época como a De Assis, do Sindicato dos Bancários; Pedro Armengol e Ribamar, do Sindicato dos Federais; Inácio Schuck, do Sindicato dos Previdenciários; Almerinda, dos Comerciários; Júlio, dos Urbanitários, enfim, todos os sindicatos que pertenciam à CUT na época presidida pelo saudoso companheiro Lourenço.
Meu sindicato era o SINTELL, atuávamos no campo da telefonia, tínhamos pouca discussão sobre as questões mais gerais acerca da comunicação, então, para mim, era tudo novidade. Mas o SINTELL decidiu participar, por orientação da FITTEL que na época já participava do FNDC, e por esta razão eu estava lá.
Participávamos também do programa Revista Popular Sindical, na Rádio Pioneira, um programa que era referência para os movimentos sociais, idealizado e organizado pelo CEPAC e diversas entidades do movimento popular e sindical, dentre eles a CUT. As entidades contrataram um horário da Pioneira e faziam o programa sem nenhuma amarra editorial. Era o único espaço, naquela época, onde conseguíamos debater as questões do movimento sindical defendidas pelas organizações com orientação política de esquerda. Nas demais rádios, não conseguíamos participar dos programas. E, naqueles anos, existiam muitos programas de entrevistas, programas com grande audiência popular, mas, quando a gente conseguia uma participação, nossa fala era cortada. Quando conseguíamos uma entrevista, o espaço era limitado, não conseguíamos falar de determinadas coisas. Se você criticasse determinado governante ou político a entrevista era encerrada imediatamente.
O espaço que nós tínhamos era esse – o Revista Sindical. Então, se fazia necessário que tivéssemos um espaço nosso, maior. Entendemos que esse espaço era a radiodifusão comunitária. Naquela época não havia regulamentação para esse tipo de emissora, apenas as convencionais que abrangiam tudo. Baixa potência não era proibida, mas seguia os mesmos critérios das emissoras comerciais. Assim, o coletivo de entidades decidiu comprar o transmissor e colocar a emissora no ar, era preciso mudar frequentemente de local para escapar da fiscalização, mas a rádio estava no ar, e nessa rádio todos falavam.
Naquela época também não havia muitas emissoras de FM no Piauí, era um espaço que possibilitava audiência pela qualidade do som e pela predominância de música. Na Primeiro de Maio rolava boa música e os debates do campo da esquerda.
Um ou dois anos depois, a rádio foi apreendida, nós conseguimos uma liminar que garantiu a permanência da radio no ar e durante um bom tempo ficamos bem à vontade, assegurados pela decisão judicial. Nem estar mudando tanto de lugar a gente precisava. Ela funcionou um bom tempo na sede da APECEF na praça do Liceu.
Apesar de acompanhar o debate nunca cheguei a integrar a direção da Rádio 1º de Maio. Minha ligação com a rádio se tornou mais próxima através da CUT quando assumi a presidência em 2003.
Nesse meio tempo houve a publicação da legislação de rádios comunitárias e a Primeiro de Maio tinha que se enquadrar na nova legislação. Para nós era melhor a situação anterior porque não havia o limite de alcance imposto pela lei. A regularização da rádio passou, então, a ser uma exigência. Para a Primeiro de Maio era difícil porque uma das recomendações era que se a emissora estivesse no ar ela não poderia receber a permissão para funcionar. Por conta da nova legislação e dos entraves burocráticos a regularização não saia e os equipamentos da rádio foram apreendidos.
Os organizadores das rádios comunitárias em Teresina e em todo estado viveram momentos de grande agitação, com passeatas e ocupações para garantir a permanência no ar, ou a devolução dos equipamentos apreendidos. O Dentel existia e funcionava na Frei Serafim e por conta de toda a situação, foram feitas diversas manifestações públicas para pressionar politicamente o Governo Federal para liberar as rádios. E assim íamos levando o movimento das rádios comunitárias aos trancos e barrancos.
Após a regulamentação, com o conhecimento da legislação, eu sempre alertava a todos que ao bancarmos essa desobediência correríamos o risco da penalização. Mesmo assim, decidimos fazer, por não aceitar a concentração de poder na comunicação e pela manipulação da informação, que ocorria muitas vezes sem o contraditório, sem debate e sem a opinião dos movimentos sociais. Não podíamos admitir que os movimentos sociais não tivessem voz. Mesmo correndo riscos, mesmo sabendo que os equipamentos poderiam ser apreendidos, que viríamos a ser processados decidimos enfrentar a situação.
Se não contestássemos as coisas, tudo ia ficar da mesma forma. A força das emissoras de radiodifusão convencional era e é muito grande. O parlamento também era repleto de representantes destas emissoras, então, era necessário provocar um debate na sociedade, envolvendo o meio jurídico, para enfrentar a realidade e tentar muda-la.
Um dia houve uma denúncia e aconteceu a apreensão dos equipamentos a pretexto de que a irradiação da radio atrapalhava as emissoras de televisão e os telefones, mas tudo era apenas pretexto. Porque as próprias emissoras comerciais Clube, Pioneira, Difusora com seu sinal, atrapalhavam a telefonia local induzindo música e sua programação nos aparelhos telefonicos.
Tempos depois tomei conhecimento de que havia sido lavrado um auto de infração e passamos a responder a um processo. Eu, como presidente da CUT, mesmo sem ligação institucional com a rádio, o Zé Martins que era o presidente da rádio e o Jean que era o locutor (isso no final de 2006).
A partir dai, fomos denunciados pela Anatel, o processo andou, quando fui citado pela primeira vez, tomei um choque. Mas sabia que corria este risco e sabia também que iria assumir uma linha de defesa justificando aquele fato pela necessidade de se debater junto a sociedade a democratização da comunicação. Esse foi o nosso argumento para continuar a luta.
A Justiça levou algum tempo para apresentar a denúncia depois que a ANATEL lavrou o ato de infração e fez a apreensão dos equipamentos. Só nos restava enfrentar os tribunais.
Uma notícia como esta impacta na vida da gente. Somos cidadão de bem, pagamos impostos, fazemos a defesa de um projeto de inclusão social e aí de repente você passa a ser tratado como um marginal, por uma causa que é séria, democrática e justa. Você se sente acuado. Mas sempre tive a certeza: historicamente no mundo, quando se lutou por mais direitos e democracia, os trabalhadores passaram por esses conflitos. É assim aqui no Brasil, e na história da democratização no mundo inteiro. A luta dos trabalhadores sempre foi de enfrentamento.
Mas quando você olha nos autos, na forma como o Procurador lhe acusa, aquilo magoa, aquilo fere, e depois as consequências, você pode ficar preso de 4 a 6 anos e isto nos deixa bastante apreensivo. Tem repercussão na família. Para todos nós que éramos empregados uma condenação traria implicações nos nossos empregos. Tudo isso influenciaria totalmente nossa vidas e a das nossas famílias. Não é uma coisa pequena e desprezível.
Mesmo assim, enfrentamos com tranquilidade, serenidade e com a firmeza de que a gente, embora desobedecendo uma lei vigente, tínhamos um motivo justo para fazer aquele enfrentamento.
O movimento social e sindical sempre foi solidário conosco (os processados). Tinha a solidariedade dos companheiros que ficam apreensivos, mas mesmo assim davam força. A assessoria jurídica também foi solidaria. As entidades estiveram conosco.
Uma das coisas que nos favoreceu no processo, foi o fato da denúncia ter sido feita no prazo da prescrição. Houve a apreensão dos equipamentos e os processos, só que entre um e outro processo houve um certo tempo que determinou a prescrição, mais de dois anos. Na realidade não era para termos passado por tudo isso. Houve um exagero da Procuradoria que buscou a punição desprezando o tempo de prescrição.
Além de tudo algo nos indignava, Teresina sofria uma verdadeira invasão de rádios, que não eram comunitárias, eram iniciativas particulares, eram pessoas que estavam infringindo a lei sem um motivo de luta pela democratização, mas com objetivo de fazer comunicação com proveito próprio e interesse comercial. Diversas emissoras foram instaladas aqui em Teresina, de uma forma totalmente irregular, algumas ligadas a políticos, e nem uma destas emissoras sofreu qualquer penalidade. Por incrível que pareça só as rádios que de fato eram comunitárias como a Primeiro de Maio e a Verona - que teve aquele incidente onde a funcionária da radio faleceu, devido a pressão recebida - é que sofreram nas mãos da polícia. Enquanto outras emissoras, que se diziam comunitárias mas agiam de forma comercial, não sofriam nenhuma penalização. A ANATEL não ia lá fiscalizar as rádios, a PF muito menos, nunca apreendeu equipamentos deles.

Aqui em Teresina a primeira rádio que obteve a outorga como comunitária, é comercial. É uma rádio que tem dono. Em Timon, tem uma outra rádio que é educativa, a ANATEL concedeu um canal educativo para uma rádio que é comercial e que agora faz parte de uma rede nacional ligada a uma igreja mas na concessão, é comunitária.
Este desvirtuamento é que nos deixava cada vez mais indignados. Poxa vida, como é que a nossa iniciativa é nobre e promove a democratização da comunicação, que não tem fins lucrativos, que transmite noticia, cultura e entretenimento, sem fazer apologia a nada que não seja a cidadania e somos impedidos de fazer comunicação e as outras iniciativas que tocam música de péssima qualidade, que faziam apologia ao crime, com programação preconceituosa, nada acontecia com elas. Apesar do nosso esperneio o processo caminhava rapidamente e nossa preocupação também.
Entre o final da última audiência, onde as testemunhas foram ouvidas, a dois anos atrás, e a expectativa de sair a sentença, é claro que todo mundo fica apreensivo. A nossa vida estava seguindo, tentávamos preservar a família daquela tensão, mas fica a aflição dentro do peito. Quando eu tomei conhecimento da sentença decidindo pelo arquivamento foi uma vibração, fiquei feliz, porquê estava lá, o processo será extinto, não vai ter pena. Isso alivia, claro.
Nós precisamos de meios de comunicação que rompam com o modelo que temos hoje que é essa concentração familiar, ideológica, esse monopólio.
A gente tem que enfrentar, com o mesmo sentimento que a sociedade se organizou para acabar com a escravatura, com o mesmo sentimento que os trabalhadores se organizaram para ter uma legislação de proteção social, com o mesmo sentimento que nós trabalhadores nos organizamos para conquistar o direito a terra, então, se há uma limitação imposta pela elite, só vamos romper se formos para o enfrentamento porque ninguém quer perder espaço de poder e se eles tem este espaço de poder na mão eles só vão entregar se for com muita resistência. E na resistência alguns tem que correr riscos. É como na guerra, nem todo mundo que vai para a guerra, volta. Faz parte do jogo. Se hoje tivesse que enfrentar novamente um processo como este, enfrentaria da mesma maneira, tomando mais cuidado para evitar negativa da concessão. E aquela vontade de chamar a companheirada para fazer a Primeiro de Maio, continua! Quem sabe quando sair um edital estaremos novamente na luta?”.
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