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O Parque Nacional Serra da Capivara: patrimônio arqueológico, histórico e ambiental da humanidade

O Parque se estende por São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias e foi criado em 5 de junho de 1979, com o objetivo de preservar uma das mais ricas concentrações de sítios arqueológicos pré-históricos do continente


ICMBio O Parque Nacional Serra da Capivara: patrimônio arqueológico, histórico e ambiental da humanidade
O PNSC é uma síntese rara de patrimônio arqueológico, antropológico e ecológico, constituindo um dos maiores legados da humanidade sobre suas origens e adaptação ao ambiente

O Parque Nacional Serra da Capivara, localizado no sudeste do estado do Piauí, é um marco incontornável na história das ocupações humanas nas Américas. Estendendo-se pelos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias, a unidade de conservação foi criada em 5 de junho de 1979, por meio do Decreto Presidencial nº 83.548, com o objetivo central de preservar uma das mais ricas concentrações de sítios arqueológicos pré-históricos do continente. A área original do parque, de cerca de 100.764 hectares, foi ampliada em 1990 com a criação de Áreas de Preservação Permanente, somando 35 mil hectares adicionais.

Sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o parque insere-se no bioma da Caatinga e apresenta ainda áreas de transição com o Cerrado, revelando uma diversidade ecológica que dialoga diretamente com a preservação dos vestígios arqueológicos locais. O manejo da unidade, ao longo das décadas, contou com um modelo inovador de cogestão, envolvendo a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), entidade idealizada e dirigida pela arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon até seu falecimento, em junho de 2025.

A importância arqueológica e científica

A Serra da Capivara é reconhecida como a área com maior concentração de sítios pré-históricos da América e, possivelmente, do mundo, com cerca de 400 locais já catalogados. Entre os destaques, encontram-se artefatos líticos, sepultamentos humanos, fragmentos cerâmicos e, sobretudo, um impressionante acervo de pinturas rupestres que datam de até 59 mil anos atrás, segundo datações realizadas por carbono-14 (C-14) e luminescência estimulada opticamente (OSL).

Esses registros desafiam paradigmas estabelecidos sobre a cronologia da ocupação humana nas Américas. A Toca do Boqueirão da Pedra Furada, um dos sítios mais estudados, revelou camadas arqueológicas com presença humana desde pelo menos 50 mil anos atrás. Outras localidades, como a Toca da Tira Peia e o Vale da Pedra Furada, também forneceram evidências de longa duração de ocupação e uso do território.

Além da materialidade, as pinturas rupestres presentes nos abrigos sob rocha — formações naturais esculpidas pela erosão — revelam cenas de caça, dança, cerimônias e representações simbólicas, apontando para uma complexa organização social e cosmológica dos antigos habitantes da região. Essas obras constituem, portanto, uma das mais sofisticadas expressões visuais do período pré-cabralino no continente.

O valor cultural e antropológico

Em 1991, a UNESCO reconheceu o Parque Nacional Serra da Capivara como Patrimônio Cultural da Humanidade. Dois anos depois, o parque foi inscrito no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), consolidando sua importância no imaginário nacional e internacional.

A abundância e a diversidade das manifestações rupestres permitem identificar diferentes tradições gráficas e estilos, revelando a presença de múltiplas culturas ao longo de milênios. A leitura dessas imagens, além de sua beleza estética, oferece pistas fundamentais para a reconstituição de modos de vida, ritos e crenças das sociedades pré-históricas que habitaram o semiárido nordestino.

Ecologia e arqueologia: interdependência e conservação

A conservação do patrimônio cultural no interior do parque está diretamente vinculada ao equilíbrio ecológico da região. Situado na Caatinga, bioma caracterizado por vegetação xeromórfica adaptada à seca, o parque abriga 33 espécies de mamíferos não-voadores, 24 de morcegos, 208 espécies de aves, 19 lagartos e diversas serpentes, rãs e sapos. Destaca-se o mocó (Kerodon rupestris), roedor endêmico da Caatinga, e a onça-pintada (Panthera onca), topo da cadeia alimentar regional.

De singular importância são os macacos-prego (Sapajus libidinosus), cuja população no parque exibe uso sistemático e diversificado de ferramentas de pedra e madeira para alimentação e interação social. Estudos arqueozoológicos indicam que esse comportamento já ocorre há pelo menos 3 mil anos, evidenciando uma linha de continuidade cultural também no comportamento animal.

Gestão, infraestrutura e museus

O Plano de Manejo do Parque Nacional Serra da Capivara incorpora uma visão sistêmica que considera as comunidades humanas locais como elementos integrantes do ecossistema. A Fundação Museu do Homem Americano implantou, ao longo dos anos, ações de desenvolvimento sustentável, promovendo capacitação profissional, educação patrimonial, turismo ecológico e valorização da cultura local como alternativas econômicas à agricultura de subsistência, severamente limitada pelas condições climáticas da região.

Apesar dos avanços, a gestão do parque enfrentou dificuldades orçamentárias, como ocorreu em 2016, quando a FUMDHAM suspendeu temporariamente suas atividades por falta de recursos. A retomada de parcerias em 2017, envolvendo o Ministério da Cultura, o ICMBio e o IPHAN, reestabeleceu a cogestão e garantiu a continuidade dos trabalhos de preservação.

Dois equipamentos culturais de destaque foram erguidos na região: o Museu do Homem Americano, sediado em São Raimundo Nonato, dedicado à exposição dos achados arqueológicos e à pesquisa científica; e o Museu da Natureza, inaugurado em 2018, cuja concepção arquitetônica espiralada simboliza a evolução da vida na Terra. Idealizado por Niède Guidon, o museu apresenta 12 salas expositivas que conduzem o visitante por uma viagem geológica, paleontológica e biológica com foco na região.

Turismo arqueológico e educação patrimonial

O turismo no Parque Nacional Serra da Capivara se sustenta na singularidade de sua paisagem cultural e natural. Com 14 trilhas e 64 sítios abertos à visitação, o parque é um verdadeiro museu a céu aberto, onde o visitante pode observar em loco registros pictóricos milenares. As representações rupestres, ainda preservadas nas paredes dos abrigos, evocam cenas do cotidiano, rituais religiosos e confrontos, revelando a complexidade das sociedades que ali viveram.

Com traços únicos no contexto da arte pré-histórica global, essas obras guardam semelhanças com as pinturas rupestres da Europa e da Oceania, mas apresentam um estilo original e profundamente enraizado na paisagem do sertão brasileiro. O Parque Nacional Serra da Capivara é, assim, uma síntese rara de patrimônio arqueológico, antropológico e ecológico, constituindo um dos maiores legados da humanidade sobre suas origens e adaptação ao ambiente.

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