História pré-cabralina e a ocupação humana no Brasil e no Piauí
Pesquisas arqueológicas sugerem que os primeiros grupos humanos podem ter chegado ao território que hoje é o Brasil há cerca de 60 mil anos

Chegada dos Primeiros Povos (até 60.000 anos atrás)
Pesquisas arqueológicas sugerem que os primeiros grupos humanos podem ter chegado ao território que hoje é o Brasil há cerca de 60 mil anos. Embora a Teoria de Clóvis, predominante até o final do século XX, apontasse para uma migração única pela ponte terrestre do Estreito de Bering (cerca de 12 mil anos atrás), achados em várias partes do Brasil — especialmente no Piauí — desafiaram essa narrativa.
No sítio arqueológico de Pedra Furada, em São Raimundo Nonato (PI), vestígios de presença humana datados de até 50 mil anos antes do presente (A.P.) foram identificados pela equipe da arqueóloga Niède Guidon. Alguns indícios ainda mais antigos, possivelmente com 100 mil anos, permanecem controversos, mas são considerados importantes no debate sobre as origens da ocupação humana nas Américas.
Evidências Paralelas e Fossilizadas (14.200 a 7.750 A.P.)
No estado de São Paulo, o sítio Alice Boer, em Ipeúna, revelou artefatos líticos datados em 14.200 anos A.P., enquanto a região de Lagoa Santa (MG) trouxe à luz Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas, com aproximadamente 11.500 a 14.000 anos A.P. Sua morfologia, distinta dos ameríndios atuais, reacendeu teorias sobre migrações múltiplas e variadas origens.
Outro dado crucial vem novamente do Piauí: um fóssil de Ancylostoma duodenale, um parasita intestinal, foi encontrado em escavações da Serra da Capivara e datado em 7.750 A.P.. Sua presença indica rotas migratórias tropicais, pois esse parasita não sobreviveria em climas frios como os da Beríngia, reforçando hipóteses de entrada pelas costas africanas, oceânicas ou asiáticas.
Transição do Pleistoceno para o Holoceno (12.000 a 4.000 A.P.)
O fim do Pleistoceno e início do Holoceno, há cerca de 12 mil anos, trouxe mudanças climáticas significativas — aumento das temperaturas e maior umidade em áreas hoje áridas, como o semiárido nordestino.
No sul do Piauí, sítios como Boqueirão da Pedra Furada e Toca do Baixão da Perna revelam vestígios datados de 10.500 anos A.P., incluindo fogueiras, instrumentos líticos (lesmas, raspadores, furadores) e pinturas rupestres. Estas se enquadram na chamada Tradição Nordeste, com representações humanas, animais e cenas rituais. Há também a Tradição Itaparica, que abrange partes do Piauí, Goiás e Minas Gerais, marcada por ferramentas lascadas, mas escassez de pontas de projéteis.
No litoral, formaram-se os sambaquis — montes de conchas e restos orgânicos — associados à Tradição Itaipu, revelando hábitos de pesca e coleta costeira.
Início da Agricultura e Cerâmica (4.000 A.P. – 1.500 d.C.)
A prática agrícola surge em várias regiões do Brasil por volta de 4.000 anos A.P., com destaque para Minas Gerais e novamente o Piauí, onde há indícios de cultivo agrícola em 2.090 A.P. A produção de cerâmica, associada ao armazenamento de alimentos, aparece por volta de 3.000 A.P. — marco importante da sedentarização.
No período cerâmico inicial (3.000 – 1.000 a.C.), populações amazônicas desenvolveram cerâmicas decoradas com padrões geométricos e zoomorfos, como os estilos Saldoide-Barrancoide e Hachurado Zonado. Isso refletia uma vida semi-sedentária baseada na horticultura, pesca e caça.
Civilizações Amazônicas e Cacicados (1.000 a.C. – 1.000 d.C.)
Entre o final do primeiro milênio a.C. e o primeiro milênio d.C., desenvolveram-se cacicados complexos na Amazônia. As culturas Marajoara, Santarém e Guarita destacam-se por sua cerâmica refinada, rituais funerários e aldeias planejadas. A sociedade já apresentava hierarquias sociais, produção agrícola intensiva, e estruturas cerimoniais.
Cerâmicas desse período estão agrupadas nos estilos Horizonte Policrômico (branco, vermelho e preto) e Inciso-Ponteado, relacionados a povos ancestrais tupi e caribes.
Kuhikugu e Tesos Marajoaras (400 a.C. – 1500 d.C.)
No Alto Xingu, o sítio arqueológico de Kuhikugu aponta para uma rede urbana com até 50 mil habitantes, infraestrutura com estradas, fortificações e agricultura intensiva. Já na Ilha de Marajó, os tesos — montes artificiais que serviam de base para moradia — abrigaram comunidades estimadas em até 500 mil pessoas. Ainda há debate se os tesos são inteiramente construídos por humanos ou adaptados de formações naturais.
Além disso, a presença da chamada terra preta — solo fértil modificado artificialmente — sugere práticas agrícolas sofisticadas e um profundo impacto humano sobre o ecossistema amazônico.
Povos Pré-Cabralinos e Cultura Material
Antes da chegada dos europeus, o Brasil era habitado por diversos grupos indígenas ligados a troncos linguísticos como os tupi-guaranis, macro-jês, caraíbas e aruaques. Os tupi-guaranis, que se expandiram entre 3.000 e 2.000 anos atrás, dominavam grande parte do litoral. Suas aldeias eram complexas, com áreas separadas para habitação, rituais e sepultamentos.
Já os macro-jês, como os caiapós e xerentes, ocupavam planaltos do interior; caribes e aruaques se concentravam na Amazônia, com redes de trocas que incluíam empréstimos linguísticos com os tupis. A arqueologia e a linguística indicam sociedades expansivas, móveis e interconectadas, organizadas em redes de rios, com uso de canoas, cerâmica sofisticada e produção de alimentos diversificada.
Pindorama e o Contato com os Europeus (século XVI)
No momento da chegada dos portugueses em 1500, estima-se que cerca de dois milhões de indígenas habitavam o atual território brasileiro. Os tupinambás, potiguaras, caetés, tabajaras, carijós e outros grupos ocupavam o litoral, vivendo em aldeias independentes, algumas fortificadas, com estruturas políticas baseadas em caciques (morubixabas) e pajés (xamãs).
A cultura material desses povos incluía plumária elaborada, danças, música, cerâmica, além de uma rica cosmovisão espiritual. A língua tupi antigo era tão difundida que se tornou a mais falada em boa parte da colônia portuguesa até o século XVIII.
Conclusão
A história pré-cabralina brasileira, com destaque para as descobertas no Piauí, revela uma ocupação humana antiga, diversificada e tecnologicamente avançada. A arqueologia brasileira continua a revelar uma profunda complexidade social, cultural e ambiental que antecede em dezenas de milênios a chegada dos europeus. O Piauí, com sua impressionante riqueza arqueológica, ocupa papel central nesse resgate histórico.
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