Política

Lula enfrenta uma ditadura parlamentar

Alçapão antidemocrático do Congresso torna indispensável o recurso ao mais tradicional instrumento da luta política: a mobilização popular


Foto: DivulgaçãoLula e Arthur Lira
Lula e Arthur Lira

Por Paulo Moreira Leite, jornalista, no 247 

Sob comando de Artur Lira, entre 2020 e 2022 o Congresso instituiu uma camisa-de-força institucional, capaz de estrangular a luta parlamentar do terceiro governo Lula.

Invisível para o cidadão comum, um pacote de mudanças antidemocráticas foi deixado como herança institucional na Câmara de Deputados pela ação conjunta de Arthur Lira e Jair Bolsonaro entre ao longo de dois anos – 2021 e 2023 – configurando um muro de concreto destinado neutralizar a soberania popular e instituir uma ditadura parlamentar na qual o poder Executivo seja esterilizado e desfigurado.

Esta situação foi denunciada na reportagem "Cúpula do Congresso concentra força inédita e cria desafio para governo Lula", de André Shalders e Daniel Weterman, que contém as principais informações reunidas neste texto. (Estado de S. Paulo, 24/10/2023).

Para entender melhor a mudança, convém fazer uma comparação.

Em 2003, início de seu primeiro mandato presidencial no Planalto, Lula contava com uma bancada de 376 deputados – ou 73% do plenário, proporção espetacular – e não sofreu uma única derrota.

Já em 2023, a soma nominal de parlamentares aliados chega a 389 deputados federais. Só parece muita coisa. Numa estimativa que dispensa os casos notórios de falsidade, a contabilidade fica em 283. Para aprovar uma emenda à constituição, indispensável para realizar mudanças essenciais ao desmonte da herança nefasta, um de seus principais compromissos de campanha, Lula necessitará de pelo menos 308 votos.

Num balanço das relações de Lula com o congresso, é possível enxergar duas situações. No primeiro mandato, em 2003, Lula conseguiu aprovar 54 medidas provisórias e não perdeu nenhuma. Em 2023, apenas 17 já perderam a validade e apenas sete foram aprovadas.

Outra comparação: em 2003, 28% dos projetos que se tornaram lei no período nasceram de iniciativa da Presidência da República. Nos primeiros dez meses de 2023, essa presença foi reduzida a 18%.

Não custa sublinhar a importância fundamental das Medidas Provisórias na ordem constitucional nascida a partir da Constituição de 1988. Num sistema político que assegurou uma nova musculatura a um Congresso que ambicionava recuperar poderes suprimidos ao longo da ditadura de 64, as MPs destinam-se a cumprir uma função essencial.

Servem de garantia à soberania popular, encarnada pelo presidente da República, única autoridade escolhida por sistema no qual cada eleitor ou eleitora vale 1 voto, num contraponto indispensável ao Congresso, onde a força fora do comum das oligarquias regionais assegura um oxigênio escandaloso à direita política. (Enquanto um deputado federal por São Paulo representa -- matematicamente -- os interesses de 650 000 eleitores e eleitoras, aquele que foi eleito em Roraima fala por 72 000. Um parlamentar do Amazonas fala por 510 mil, da Bahia, 379 mil, de Minas Gerais, 396,9 mil, enquanto um mesmo colega de Roraima precisa de 72 000 votos para se eleger, 103 300 no Amapá e 100 600 no Acre. Para conhecer a lista completa, Estado por Estado, ver portal da Câmara de Deputados).

Em entrevista ao Estadão, a professora Graziella Testa, da Escola de Políticas Públicas e Governo, da FG, descreve a situação. "São dois processos concomitantes. Um deles é o fortalecimento do Legislativo em relação aos outros poderes. E o outro é o de centralidade (das decisões) na Câmara. No Senado, o processo ocorre residualmente mas na Câmara isso tem um impacto maior", diz a professora.

Nessa operação de concentração de poderes, Artur Lira conseguiu transformar as votações online em decisões que têm validade – ou não – conforme sua vontade como presidente da Casa. Em novo sintoma de seus poderes imperiais, cabe ao presidente da Câmara definir pela validade, ou não, de uma votação remota, onde um parlamentar "só precisa de um celular com internet", diz Graziella Testa.

Para um governo eleito com a missão necessária de desfazer o edifício de mudanças reacionárias produzidas em período recente e retomar um projeto de desenvolvimento econômico e distribuição de renda, o alçapão antidemocrático do Congresso torna indispensável o recurso ao mais tradicional instrumento da luta política – a mobilização popular, capaz de modificar uma relação de forças desfavorável.

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