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'Intervalos bíblicos' viram febre em escolas e reacendem debates sobre laicidade do Estado

Momentos de louvor entre as aulas dividem opiniões entre liberdade religiosa e imposição de crenças nas escolas


Reprodução 'Intervalos bíblicos' viram febre em escolas e reacendem debates sobre laicidade do Estado
'Intervalos bíblicos' viram febre em escolas e reacendem debates sobre laicidade do Estado

Nos últimos tempos, os devocionais – momentos de adoração típicos de comunidades evangélicas – têm se intensificado nos intervalos escolares de colégios públicos e privados em diversas regiões do Brasil. Uma matéria publicada pelo UOL revelou que, em pelo menos 19 estados, estudantes têm promovido encontros regulares para leitura bíblica, pregações e orações, gerando um acalorado debate sobre os limites da liberdade religiosa no ambiente escolar.

Embora esses encontros sejam organizados por alunos e sejam apresentados como voluntários, a prática levanta questões sobre a laicidade do Estado, um princípio garantido pela Constituição Federal. Críticos afirmam que tais práticas podem configurar proselitismo religioso e criar um ambiente de exclusão para alunos que não compartilham da mesma fé. Por outro lado, defensores argumentam que esses momentos de fé promovem valores éticos e contribuem para o bem-estar dos estudantes.

A prática tem se tornado cada vez mais comum em escolas públicas. Na Etec Guaracy Silveira, em São Paulo, os alunos realizam encontros semanais para estudos bíblicos. Em Pernambuco, a Escola Estadual Sylvio Rabello, no Recife, mantém encontros regulares desde o início de 2024, sempre com a autorização da direção. Já na Escola Estadual Guiomar de Vasconcelos, em Canguaretama (RN), até as redes sociais são usadas para divulgar as reuniões.

Esses encontros, muitas vezes realizados em bibliotecas, quadras ou pátios, contam com a presença de líderes religiosos e com o uso de microfones. Especialistas, como o professor Fernando Cássio, da UFABC, alertam que a falta de regulamentação pode abrir espaço para abusos. “Não podemos permitir que encontros religiosos interfiram na rotina escolar, seja por meio de música alta ou tentativas de imposição de uma fé. A escola pública deve ser um espaço de diversidade”, afirma o professor.

Polêmica e mobilização - O Ministério Público de Pernambuco abriu uma investigação em abril de 2024 para apurar possíveis excessos em escolas estaduais. O promotor Salomão Ismail Filho ressaltou que atos religiosos devem respeitar limites, como não usar música alta ou tentar convencer outros estudantes a participarem. No entanto, defensores, como a técnica em radiologia Alexandra da Silva, mãe de uma estudante participante, destacam os benefícios da prática. “Faz muito bem à minha filha, e até aos alunos que não são cristãos e resolvem participar”, afirma.

A mobilização também é visível entre os próprios alunos. Um abaixo-assinado virtual em Pernambuco já reuniu mais de 17 mil assinaturas em defesa dos intervalos bíblicos. Durante uma audiência pública na Assembleia Legislativa do estado, o estudante João Pedro dos Santos destacou: “Nossa base é a Bíblia, que como todos sabem, não faz mal a ninguém. Pelo contrário, promove e fortalece a ética das pessoas que são tocadas pela ‘Palavra’”.

Excessos e a entrada de influenciadores religiosos - Em estados como Goiás, a prática tem ultrapassado o formato simples de encontro. Influenciadores religiosos têm realizado cultos nas quadras escolares, muitas vezes disfarçados de palestras motivacionais. Vídeos nas redes sociais mostram momentos de oração coletiva, com alguns alunos ajoelhados e emocionados.

Especialistas, como Ivete Caetano, presidente do Sindicato dos Professores de Pernambuco, destacam que a escola deve ser um espaço plural e de promoção da ciência. “Na escola, assim como na política, não podemos fazer campanha eleitoral para um partido, mas podemos discutir as propostas dos candidatos de maneira plural”, argumenta.

Interferência de autoridades e projetos de lei - Casos, como o de Roraima, em que um policial militar leu trechos da Bíblia para alunos de um colégio militarizado enquanto portava uma arma, levantaram preocupações sobre a possível interferência de autoridades em práticas religiosas nas escolas. O governo estadual está investigando o caso.

No Congresso Nacional, a controvérsia também tem ganhado força. Deputadas como Michele Collins (PP-PE) e Clarissa Tércio (PP-PE) apresentaram projetos de lei que buscam permitir práticas religiosas em escolas, prevendo até multas para gestores que tentarem impedir essas atividades. No entanto, as audiências públicas sobre o tema têm sido marcadas por discussões acaloradas.

Enquanto os debates continuam, o Ministério Público, especialistas e representantes religiosos buscam um ponto de equilíbrio entre a garantia da liberdade religiosa e o respeito à diversidade dentro das escolas.

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