Do banho ao jantar: cirurgia gratuita devolve autonomia a tetraplégica
Tetraplégica do interior de São Paulo volta a fazer tarefas sozinhas após cirurgia no Hospital das Clínicas, em São Paulo

Metrópoles - Tomar banho sozinha, cozinhar o próprio jantar, limpar a casa. Tarefas simples para quem tem os movimentos dos braços e mãos eram inviáveis para Karen Loiola, de 40 anos, até 2018. Foi nessa época que uma cirurgia fez com que a mulher, tetraplégica desde os 21 anos, voltasse a fazer atividades suspensas há mais de uma década, e ganhasse autonomia.
“Depois de 13 anos de lesão, eu voltei a fazer comida. É um prazer muito grande você chamar alguém e falar: ‘Hoje eu vou fazer o arrozinho’, ‘Esse é o pão que eu fiz’”, diz Karen.
Moradora de Sorocaba, no interior de São Paulo, ela perdeu os movimentos após um acidente em um parque aquático, em 2006. Depois da lesão na medula, Karen manteve apenas a mobilidade parcial dos braços, e precisava de adaptadores para realizar tarefas como escovar os dentes e passar maquiagem.
“Para tudo eu tinha que ter um equipamento. Quando, às vezes, eu esquecia o adaptador para comer num restaurante, eu não tinha condições de comer [sozinha]. Tinha que pedir para alguém colocar na boca. […] Já dava aquele stress, aquele nervoso. Perdia a graça o dia”.
Outras atividades, mais complexas, eram impossíveis de fazer sozinha, mesmo com adaptadores. Era o caso de um banho, por exemplo, que demandava a ajuda de outras pessoas.
Tudo mudou em 2018, quando amigos lotaram o celular de Karen de mensagens e pediram que ela ligasse a televisão. Naquele domingo, uma reportagem noticiou que Bruno Landgraf, ex-goleiro do São Paulo e, como ela, tetraplégico após um acidente, tinha voltado a realizar alguns movimentos com as mãos depois de uma cirurgia.
No mesmo dia, Karen mandou um e-mail para os médicos Emygdio de Paula e Renata Paulos, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que apareciam na reportagem.
No dia seguinte, veio a resposta. Ela foi orientada a passar por uma avaliação com a equipe médica, que diria se a sorocabana era ou não elegível para a operação.
A indicação para o tratamento depende de uma análise clínica, como explica a doutora Renata Paulos, especialista em mão do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HCFMUSP.
“Normalmente a gente vê pelo exame físico quais movimentos o paciente já tem, o que ele precisaria ganhar. […] Eu tenho que ter um músculo, ou um nervo, que eu consiga mudar de função, mas sem que isso prejudique o paciente.”
Como funciona a cirurgia
- Na operação, os médicos trocam a função de um músculo ou nervo para dar movimento às partes dos braços e mãos que estão com a mobilidade prejudicada.
- “A gente, na verdade, acaba redirecionando todo o trajeto do músculo”, explica Renata. A médica diz que os pacientes não perdem os movimentos que já possuem, mas ganham novos, a partir do redirecionamento do músculo.
- Por isso, para serem elegíveis à operação, os pacientes precisam já ter algum movimento nos membros superiores. Pessoas que movimentam apenas o pescoço, por exemplo, não podem passar pelo tratamento.
Karen, que já tinha movimentos parciais nos braços, foi considerada apta para a cirurgia. No mesmo ano fez a operação, passou pela reabilitação e deixou os adaptadores de lado.
“Não são coisas grandiosas, mas no meu dia a dia, nas minhas 24 horas, eu não sabia quantas vezes eu pedia ‘Por favor, me ajuda’ [para alguém]. Não precisar pedir quase nada faz muito bem.”
Renata, que acompanhou o caso de Karen, foi uma das fundadoras do Ambulatório Mãos Tetraplégicas, no Hospital das Clínicas, desenvolvido para atender pacientes como ela, em 2017.
Desde então, o ambulatório realizou centenas de cirurgias. “No início tinha paciente que vinha e falava: ‘Doutora, eu estou assim há 20 anos, como ninguém me falou que eu podia estar melhor antes?’. As pessoas não sabem [da cirurgia]. Inclusive os profissionais de saúde muitas vezes não sabem.”
Ela conta sobre pacientes que voltaram a dirigir, praticar esportes e a estudar depois da cirurgia.
“Tem um impacto muito grande para o paciente. E, muitas vezes, para a própria família. Se a pessoa não tem cuidadores em casa ou um suporte maior, alguém da família acaba abrindo mão do trabalho para poder auxiliar. E com essa pessoa mais independente, a outra, que precisou abrir mão para cuidar dela, volta a ter independência também.”
Para Karen, a principal diferença foi justamente no cuidado. “Uma coisa que sempre me incomodou foi saber que meus pais estavam envelhecendo e cuidando de mim. Mexia psicologicamente comigo.”
Depois da cirurgia, ela ajuda a cuidar do pai, que teve um AVC. “Hoje, eu sei que eu sou fundamental para ajudá-los. E, para mim, isso é um grande privilégio porque é o que eu sempre quis: estar cuidando deles.”
Como fazer a cirurgia?
- Pacientes que já fazem tratamento no Hospital das Clínicas podem ser encaminhados dentro da própria unidade para uma consulta de avaliação.
- Isso também inclui os pacientes do Instituto Lucy Montoro, que é vinculado ao hospital.
- Pacientes que ainda não têm vínculo com o Hospital das Clínicas podem ser encaminhados por meio do sistema CROSS, da Secretaria da Saúde. Para isso, o médico que atende o paciente em outra unidade do SUS devem incluí-lo no sistema.
- A avaliação pode ser tanto no Hospital das Clínicas quanto em outro serviço especializado.
- A operação é feita gratuitamente pelo SUS.
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