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Que Brasil queremos? O perigo do senso comum

"É preciso dolorosamente reconhecer que o governo Lula 3 está dentro do senso comum", escreve Fernando Horta

Foto: ReproduçãoBandeira do Brasil
Bandeira do Brasil

Por Fernando Horta, historiador e colunista no 247

O senso comum é o tipo de pensamento que ajuda a galinha a atravessar a rua. Durante algumas centenas de milênios ajudou ao ser humano sobreviver. É baseado numa visão frágil da realidade. A galinha olha os carros distantes, verifica a distância que precisa atravessar para estar a salvo e imaginando tudo mais constante acha de forma prática a velocidade que precisa para atravessar a rua. Ninguém vai dizer que é preciso conhecer a mecânica newtoniana para se atravessar a rua. O senso comum funciona para situações comuns.

A filha do vizinho da prima do professor da academia ficou com sintomas de gripe depois de tomar a vacina. Logo, pelo senso comum, uma parte da sociedade afirma que a vacina causa a doença. Característica do pensamento de senso comum: delimitar causas sem o devido cuidado. A ciência sabe hoje que para afirmarmos a causa de algo é preciso satisfazer não uma, mas quatro premissas lógicas. Para o evento A ser causa do evento B é preciso que (I) A venha antes de B, o que a filha do vizinho verificou a atestou para além da dúvida razoável. Mas também é preciso que (II) sempre que ocorra A, ocorra B; que (III) nunca ocorra B sem antes ter ocorrido A; e (IV) que A e B não sejam causados por evento anterior e, assim, eles mesmos seriam consequências conjuntas.

Trocando em miúdos e falando simples, seria necessário que a filha do vizinho não só tivesse visto alguém que tomou a vacina ficar doente, mas também que tivesse atestados que TODOS os que tomam vacinas ficam doentes. Também era preciso mostrar que NUNCA SE fica doente sem a vacina e que tomar vacina e ficar doente não estão relacionados com um evento anterior que dê causa aos dois. Não precisa ficar chateado, é quase impossível. Por isso a ciência toma tantos cuidados para afirmar causas e mesmo Newton, que foi o modelo de ciência adotado errou na imensa maioria das causas que apontou.

Assim, se alguém gritar que vacinas causam doenças, vamos todos apontar o absurdo e chamar de “negacionismo”. Se 50 mil pessoas se recusarem a tomar vacina por conta da postagem nas redes sociais da filha do vizinho, vamos apontar como “fakenews”. Por conta da pandemia, e do nosso conhecimento pregresso, alguns efeitos do senso comum são mais facilmente detectados que outros.

Os governos Lula 1 e Lula 2 foram governos virtuosos porque se afastaram do senso comum. O senso comum diz que “pobreza é falta de dinheiro” e todos os programas de transferência de renda que até então tinham existido não conseguiam acabar com o problema da pobreza. Afastando-se do senso comum, Lula (e as pessoas que o cercavam) foram buscar em Amartya Sen a ideia de que a pobreza é a falta de “capacidades”. Por capacidades, Sen definia qualquer tipo de conhecimento ou acesso a determinados recursos que possam ser transformados em recursos econômicos. Daí surgiu o Bolsa Família. Não é meramente uma política de transferência de renda, é todo um combo de atenções do Estado, desde a necessidade de cuidado com a saúde das crianças até mesmo processos de formação educacional são ofertados. Simplesmente transferir renda não resolve. O Bolsa Família foi premiado no mundo todo, mudou a cara do Brasil e reelegeu Lula e o PT porque não era baseado no senso comum.

Acreditar que um governo precisa arrecadar para poder gastar é senso comum. Você pode não se dar conta disso porque não teve a oportunidade ou o tempo para estudar essas questões. O Estado não é um “empresário”, mas um ente que organiza e direciona as forças produtivas de uma sociedade. E a moeda não é um indicativo neutro de riqueza, mas uma caixa de transporte de valor que transpõe o tempo. Como o Estado não vai acabar amanhã (nem nunca) ele pode emitir moeda no presente como confissão de dívida para saldar no futuro. Se as condições produtivas de uma sociedade estão subutilizadas, então o endividamento no presente (representado pelo “gasto”) não gera inflação.

Da mesma forma, é senso comum achar que se pode “controlar” a revolução digital a golpes de leis e decisões jurídicas. Aliás, o maior senso comum (e o mais perigoso) é o mantra do ministro Alexandre de Moraes de que “o que é crime no mundo material é tem que ser crime no mundo digital”. Isso é tão somente um absurdo. É possível dar, de cabeça, umas dez situações em que esse regra não se aplica, tanto para um lado, como para o outro. Tentar controlar “fakenews” através de criminalização e punição foi exatamente o que tentaram fazer os faraós egípcios há 6000 anos, por exemplo. A Igreja católica tentou fazer isso desde o Concílio de Nicéia, em 325 d.C. Basicamente, toda estrutura de poder já montada pelo homem tentou definir o que é certo e errado se dizer e pensar e levantou armas às fakenews de seu tempo. E nenhuma teve sucesso.

Foi somente quando as religiões, os impérios e os Estados se deram conta que a única forma de “combater as fakenews” dos seus tempos era através da educação que a coisa realmente mudou. E é exatamente aí que o senso comum está no MEC hoje. Acreditar que criar escolas resolve o problema da educação brasileira é senso comum, tanto quanto acreditar que pagar para aluno ficar em sala de aula resolve. Más pesquisas e interesses diversos estabeleceram a norma de que a “evasão escolar” é causada pelas condições econômicas das famílias. Senso comum. A evasão escolar no Brasil tem uma miríade de causas e se a questão econômica é sim parte disso, ela é condição necessária, mas não suficiente para explicar a evasão. É preciso sim atacar as causas do empobrecimento da população brasileira, e isso o presidente Lula fez e faz de forma muito bem-feita. Ocorre que acreditar que isso resolve os problemas da educação brasileira é senso comum.

Se, por um lado, o MEC é um poço de decisões de senso comum, por outro, as fundações e ong’s que estão ali parasitando o ministério atuam longe deste senso. E daí você pode achar que estou sendo contraditório, mas não estou. Os “banqueiros pela educação” (como eu chamo o conjunto de interesses que alimentados pela exploração e o lucro se apoderaram da educação brasileira no governo Lula 3) sabem que a forma de moldar o pensamento das gerações futuras é determinar o que hoje se ensina. Se eu quero um Brasil democrático, inclusivo e respeitador dos direitos humanos eu preciso ensinar História, Filosofia, Literatura, Arte, Sociologia e Geografia de forma crítica. Se eu quero um Brasil capaz de fechar a distância que tem na ciência para os países do norte, então eu preciso ensinar Línguas, Matemática, Física, Biologia, Química, Filosofia, História e etc. Se eu quiser criar um Brasil passivo à superexploração, agressivo contra quem pede mudanças, inefetivo nas pesquisas científicas, dócil e colonizado pelas ordens geopolíticas então eu ensino como fazer bolo de rolo, educação financeira, liderança e desmonto a escada que todos os países usaram para romper a barreira do subdesenvolvimento. Os banqueiros sabem disso. Sabem que para convencer a todos que a mudanças climáticas nada tem a ver com a ação social e econômica deles hoje, eles precisam tomar a educação de assalto e ali banir a crítica, a vontade de mudança e a capacidade de fugir do senso comum. Em troca eles dizem que dão “liberdade”. Liberdade dentro de uma gaiola geopolítica e histórica onde nós, passarinhos, podemos escolher o poleiro de onde vamos contemplar a vida no mundo do século XXI.

É preciso dolorosamente reconhecer que o governo Lula 3 está dentro do senso comum. E as pesquisas de aprovação já mostram isso. Os grupos que, mesmo sabendo como fazer e como não fazer as coisas, estão alijados do contato, conversa e decisão com o governo vão se afastando. Lula, por sua história e representação, ainda condensa uma parte significativa de apoios, mas muita gente vai devagarinho se desgarrando. Uma das características mais perigosas do senso comum é parecer que “funciona”. A capacidade de um líder governar está também diretamente ligada à sua capacidade em selecionar quem ouvir.

OBS: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do pensarpiaui.

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