Pensar Piauí

Ao vivo, do terreno onde cresce a Comunicação Alternativa

Como a cobertura - e a ausência dela - das manifestações de 29 de maio ajudam a fomentar a mídia alternativa

Foto: UnBSamária Andrade
Samária Andrade

Por Samária Andrade, Doutora em Comunicação, UESPI 

 As manifestações do dia 29 de maio (29M) em mais de 200 cidades brasileiras se converteram nas maiores mobilizações populares anti-Bolsonaro desde o início de seu governo. A grande repercussão, além de atestar seu alcance, confirmou o poder de coberturas ao vivo de veículos de mídia alternativa e cobrou o silêncio de jornais tradicionais do país. Apenas a Folha de S. Paulo deu destaque em sua capa para o acontecimento. As primeiras páginas de O Estado de S. Paulo e O Globo ignoraram os protestos.

A ausência da notícia ficou mais flagrante pelo espaço que as manifestações mereceram na imprensa internacional (The Guardian, Le Monde, La Nación, El Pais). As capas dos jornalões brasileiros contribuíram com o sentimento de ausência proposital. Em O Globo, sob a retranca “Oportunidades”, aparecia a manchete: “PIB reaquece e empresas desengavetam R$ 164 bilhões em projetos”. O Estadão parecia publicar em um país paradisíaco, estampando “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office”. Ora, quem disse que uma pandemia não pode ser oportunidade de negócio, não é mesmo? Estão aí as manchetes da editoria de economia para comprovar (de economia-econômica, diria a Economia Política crítica).

O clima de otimismo e “esqueça os mortos, eles não levantam mais”, em O Estadão, ficou completo com a foto da matéria ao lado – um bonito casal e seus filhos numa área verde e a legenda que trazia o termo “paraíso orgânico”. Parecia até uma ironia (será que foi?), lembrando as capas dos jornais que publicavam receitas de bolo na ditadura civil-militar dos anos 1960-1970 quando queriam, na verdade, denunciar que não estavam podendo publicar o que deveriam estar publicando.

Para discutir a ausência de cobertura do 29M nos jornalões, surgiram desde explicações sobre interesses da empresa jornalística em conflito com o interesse social; passando por “nem tudo é coisa de jornalismo malvado” e “eles ´fecham´ as edições de domingo no sábado, por volta de meio dia” (portanto, antes das manifestações atingirem a proporção a que chegaram); até “quem se importa com o que os jornalões publicam, agora tem-se as redes sociais”. E tentou-se entender o fato por várias abordagens, convocando, entre outras, a ideia de espiral do silêncio (Noelle-Neumann), que leva a subestimar acontecimentos por achar que eles ficarão restritos a uma minoria.

Pedro Aguiar, professor de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), em matéria na revista piauí, duvidou de um erro de avaliação dos jornais tradicionais, uma vez que o valor notícia dos protestos era evidente. Para ele houve uma escolha deliberada em esconder imagens onde se sobressaiam bandeiras vermelhas, em uma “atenção” aos leitores no papel, em sua maioria idosos e conservadores. É provável que o estudioso Nilson Lage concordasse com essa ideia. Em entrevista recente ao portal ComunicoLog, ele definiu o Estadão como representante da oligarquia paulista e a Folha como um Estadão envergonhado, que atende à mesma burguesia, mas tentando fazer um contraponto.

Nesse texto nos interessa compreender ainda um outro aspecto: como a ausência de coberturas na mídia convencional em momentos assim ajuda a explicar o crescimento dos chamados veículos alternativos de comunicação. Já que os grandes jornais querem falar de oportunidade, vamos a ela.

Ao longo da história, as insatisfações com a mídia de formato empresarial fizeram surgir diferentes experiências de veículos alternativos de comunicação. Nas primeiras décadas do século XXI essas experiências adquirem grande difusão por meio dos avanços em Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), sendo essencialmente digitais - com destaque para o uso das mídias sociais -, e sendo permitidas pela redução nos custos para se criar possibilidades de produtos jornalísticos (ou semelhantes), ampliado a oferta de informações (MICK; TAVARES, 2017).

Mas explicações apenas tecno[1]lógicas não dão conta de compreender tudo o que se passa. Elas confluem com uma mobilização social renovada (em parte pelas próprias TICs) e o cresci[1]mento de movimentos culturais e identitários que trazem novas reivindicações coletivas. Junta-se a isso um contexto de crise no mundo do trabalho de modo geral, que atravessa também o jornalismo. O cenário se completa com o capitalismo avançado (também em crise), que já via, ao lado da concentração de grandes organizações de comunicação, a emergência de uma reorganização produtiva, dando espaço a novos atores (TOURAINE, 2011; HARVEY, 2011).

Assim, os vários fenômenos que se articulam vão da disponibilidade técnica a mudanças estruturais mais amplas no campo da comunicação e do jornalismo. A condição de crises que se interconectam culmina num desgaste em modelos representativos, que abala hierarquias, go[1]vernos, escolas, igrejas, partidos políticos. Não à toa um dos lemas das manifestações de rua no mundo e no Brasil nos primeiros anos da década de 2010 era “não me representa”, expondo a desconfiança com tudo o que estava instituído – inclusive com a mídia, portadora e disseminadora dos valores do que estava em suspeição.

Não se sentindo representados pela mídia e com acesso aos instrumentos para criar e disseminar relatos sem grandes custos, surgem atores que tomam para si a função de contar o que acontece. Mick e Tavares falam de um gap entre o que a mídia jornalística diz/faz e o que esses agentes acreditam que deva ser dito/feito.

Um estudo produzido pela organização espanhola SembraMedia, de estudos de mídias alternativas digitais, verificou grande crescimento desses veículos nas primeiras décadas do século XXI na Argentina, Colômbia, México e no Brasil, caracterizados por viés progressista. As explicações para esse fenômeno estariam na condição altamente polarizada desses países do ponto de vista político e na propriedade de empresas de mídia muito concentrada e com controle sobre o que é publicado, o que termina impelindo jornalistas a produzirem jornalismo independente.

Dessa forma, outras narrativas são postas em circulação e conquistam parcelas de público. No 29M, enquanto os grandes jornais brasileiros praticamente ignoravam o que acontecia, os eventos eram cobertos por veículos locais - a exemplo do Ocorre Diário, em Teresina; ditavam a pauta em veículos nacionais alinhados à esquerda - como Brasil de Fato; e eram impulsionados por coletivos de comunicação já experientes nas coberturas de dimensão nacional, como a Mídia Ninja. Essa última ajudou a criar um jeito de narrar eventos de rua ao vivo, valorizando a natureza narrativa dos acontecimentos e conseguindo mobilizar até mil colaboradores ao mesmo tempo por todo o país, enviando imagens e informações.

O modelo se mostrou mais uma vez eficiente. No final do dia 29M a Ninja contabilizava mais de 4 horas de live ininterrupta no Youtube e lives de várias cidades no Instagram. Fábio Malini, professor de Comunicação da Universidade Federal do Espírito Santo e coautor do livro A Internet e a Rua (2013), publicou gráficos em que a Ninja aparece como o perfil mais citado no Instagram e o de maior interação no Twitter àquele dia. Levantamento da consultoria Arquimedes, a pedido da revista piauí, analisou o engajamento em redes sociais das reportagens publicadas pelo O Globo e Estadão entre 24 e 31 de maio e concluiu que, enquanto a reportagem do site de O Globo sobre os protestos anti-Bolsonaro teve 9,8 mil compartilhamentos no Facebook, a manchete de domingo sobre os “sinais de reação do PIB” registrou apenas 396 compartilhamentos. No Estadão, a reportagem no site sobre as manifestações teve 11 mil compartilhamentos no Facebook, enquanto a chamada de primeira página sobre as cidades felizes do home office foi compartilhada apenas 178 vezes. Ou seja: as redes sociais davam mais uma amostra de sua posição como maiores canais de entrada de público nas notícias online e o público dizia que notícia ele estava querendo ver.

O dia 30 de maio foi o que já se sabe: enquanto a informação do 29M era sonegada das primeiras páginas de O Globo e Estadão, crescia a reclamação sobre a ausência do tema – o que não deixa de ser revelador sobre a importância que continua a se conferir a essas páginas, ainda que o declínio dos jornais impressos apareça em números de circulação. No mesmo dia, muito cedo, a Ninja já publicava um vídeo com imagens de diversos lugares do Brasil – uma ideia de “pós-evento” em um filme bem editado, como costumam fazer.

Enquanto os meios digitais alternativos aproveitam a oportunidade para mostrar fôlego, ocupando o espaço deixado aberto pela mídia tradicional, é difícil saber até onde esses alternativos conseguem ir, uma vez que têm dificuldades de investimentos, no Brasil não há políticas públicas de apoio ao crescimento da mídia dita independente – como acontece em vários países europeus -, e a visibilidade que eles alcançam depende de plataformas digitais que se tornaram empresas gigantes do setor das TICs, controladas por métricas opacas e desreguladas.

Também não se pode perder de vista que os atores alternativos são heterogêneos e que a mesma tecnologia que permite o crescimento de mídias progressistas tem servido aos usos que desembocaram na disseminação das mentiras distribuídas eletronicamente de modo organizado e que tem corroído democracias pelo mundo, beneficiando- -se da mesma falta de transparência que dita o modelo das plataformas digitais.

E, se as empresas jornalísticas tradicionais também reproduzem lutas de classe, talvez não fosse um delírio comunista supor que ali, naquela manchete da Folha, esteja a malícia de um jornalista que, ao escrever “Milhares saem as ruas contra Bolsonaro pelo país”, falava não de geografia, mas de uma causa.

OBS: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do pensarpiaui.

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