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Não regulamos as mídias e somos censurados por elas

Não regulamos as mídias e somos censurados por elas

Foto: GoogleNão regulamos as mídias e somos censurados por elas
Não regulamos as mídias e somos censurados por elas

Por Marcio José Silva, no Justificando Antonio Luiz Zambelli é cidadão brasileiro comum, homem religioso, trabalhador, que sempre viveu em harmonia com o ethos estabelecido: casado, teve seus filhos, cuidou de seus pais e mantém empresa que comercializa produtos químicos. Em 2008, durante suas férias, viu a vida ser arruinada pela Rede Globo de televisão que simplesmente anunciou, no Jornal Nacional [1], sem escrúpulos, que este era foragido por chefiar uma quadrilha que adulterava combustível e cimento.

A Rede Globo ampara-se na distorção do artigo 5° da Constituição Federal (1988) brasileira para cometer, como faz há anos, seus crimes que passam sem punição. Este artigo versa sobre “manifestação do pensament o” (inciso IV) e “acesso à informação” (inciso XIV). De fato, o trabalho da imprensa no Estado Democrático de Direito é essencial, desde que seja realizado por instituições que respeitem e ajam de acordo com os princípios da democracia e do Direito.

Como a Rede Globo de fato constitui-se na história brasileira? O Golpe de 1964, estruturado pelas Forças Armadas, Igreja Católica, banqueiros, empresários e com forte apoio dos Estados Unidos da América (SILVA, 2017) necessitava de um veículo propagador desta ideologia autoritária que foi estabelecida institucionalmente. Este discurso de institucionalidade como mantenedora ou garantidora do Estado Democrático de Direito precisa ser desmistificado porque os fatos históricos mostram outra realidade.

Diferentemente dos Golpes de Estado e ditaduras ocorridas em outros países, o Brasil criou um sistema diferente: setores sociais clamaram pela queda do Presidente João Goulart, as Forças Armadas precipitaram sua queda e coube ao Congresso Nacional e Judiciário legitimarem este por meio de Sessão Extraordinária ocorrida em 11 de abril de 1964 (Diário Congresso Nacional, 1964). Logo, do ponto de vista democrático-institucional, 1964 não pode ser chamado de “golpe”, pois, como ocorrido em 2016, as “instituições estavam em funcionamento” e, na verdade, legitimaram por meios legais o que se passava com a agonizante democracia brasileira.

Contudo, entre as burocracias jurídicas e o convencimento populacional, havia a necessidade de um veículo de massa que pudesse levar ao povo, desde o ribeirinho ao aldeão, da pessoa no arado ao alto executivo, do operário à dona de casa a notícia de que tudo transcorria em normalidade, mesmo sendo um Golpe contra a nação. Sobre isto, Carvalho (2000, p. 149) afirma:

"Os meios de comunicação de massa no Brasil constituem mecanismos de poder através dos quais as elites brasileiras aumentam o escopo de suas articulações hegemônicas, sedimentando relações sociais tradicionais por meio de um discurso que universaliza projetos."

O vazio deixado após o suicídio de Vargas, último homem a exercer a presidência com os brios de separar os Poderes da República, sendo ele o Chefe do Executivo, não mesclando seu papel em negociatas bizarras com o Chefe do Legislativo, tampouco envolvendo o Judiciário em questões políticas, conduziu o Brasil à instabilidade catastrófica de 1964. Este vazio faz aumentar antigas demandas dos Integralistas (movimento ultra-conservador), alimenta a hidrofobia política de Carlos Lacerda, opositor ferrenho do Brasil, e ambienta o país para o caos necessário que leva a 1964, germinando e criando o Império Globo, com poderes paralelos e superiores ao Estado brasileiro. Dantas (2014, p. 61) recorda:

O Globo [jornal impresso] dava como garantia o penhor de uma máquina de impressão a ser adquirida graças ao empréstimo obtido [junto ao Banco do Brasil]. Nos empréstimos que obteria depois, novas máquinas a serem importadas, às quais se juntavam uma velha rotativa Goss, já hipotecada, eram oferecidas como garantia.

Nos anos 1950 Roberto Marinho preparava seu caminho para o triunfo entre os Senhores do Poder que assumiriam em 1964. Uma vez estabelecido o regime de 1964, a então criada Organização Globo fez seu serviço no lupanar político oferecendo-se para ser a “namoradinha do Brasil”:

[A] grande patrocinadora da política a aliciamento do povo brasileiro, prestando apoio ao regime da caserna, recebendo como contrapartida privilégios que nenhuma outra rede de televisão recebeu (SILVA, 2018, p. 122).

Nos anos 1970 o regime encomendou nova “voz nacional” com nome estratégico: Jornal Nacional, ou seja, tudo que não partisse deste meio não era nacional, patriótico, legítimo ou autêntico.

Assim, o que a imprensa comum sofre nos anos de chumbo do regime de 1964, para as Organizações Globo foi o momento mais dourado possível: tornou-se o Império Midiático mais poderoso do hemisfério sul, quiçá do planeta. Enquanto o “baixo clero” da imprensa sofre a repressão da censura e perseguição política, a vedete do regime recebe verbas suntuosas para aumentar seu Império, cria a “padrão Globo de qualidade”, pois toda outra imprensa não tem qualidade, criando no imaginário brasileiro a certeza de que a Rede Globo é a própria expressão da verdade.

Após 1988, a preocupação dos que sofreram as hostilidades do regime de 1964, visando o bem do povo brasileiro, que necessita de imprensa imparcial e dinâmica, foi incluir a liberdade de expressão no texto constitucional (art. 5°, inciso IX). O Império Midiático, que sempre esteve ao serviço dos capangas e algozes, repentinamente, adota o discurso inverso: de dominante a dominados, lutando por liberdade de imprensa, como se estes tivessem sido privados da sua em algum momento.

Esta estratégia espúria era, na verdade, apenas um estratagema para que pudesse manter sua estratégia de controle sobre o grande poder simbólico adquirido. Sobre a abrangência e importância deste poder, daí a preocupação das Organizações Globo em mantê-lo. Wacquant (2013, p. 89) diz:

Essas lutas em diferentes níveis — aninhadas, por assim dizer, à maneira de círculos concêntricos — determinam, imediatamente, quais propriedades sociais constituem capital e o valor relativo das diferentes espécies em circulação nos diversos jogos sociais que conformam uma dada formação social, e mais significativamente a ‘taxa de conversão’ corrente, num dado momento, entre capital econômico e capital cultural.

Assim sendo, quando o assunto é “regulação das mídias”, evidentemente a primeira a se insurgir sempre será as Organizações Globo, criando imediatamente o discurso de “censura”, algo que jamais lhe ocorreu na história, exceto a alguns de seus profissionais isoladamente, mas não como empresa de imprensa e mídia, fazendo parecer que a regulação é censura. Contudo, analisemos pela língua portuguesa porque esta abordagem simplista é falácia, sofisma e difamação.

A Censura, usada nos regimes totalitários, envolve o trabalho de um censor, agente público que tem o dever de fazer análise de todo trabalho que será veiculado em qualquer meio de comunicação público ou privado, com base em critérios morais ou políticos para autorizar ou não sua veiculação. A regulação deriva de regulamentar. Juridicamente, regulamentar envolve estabelecer padrões jurídicos, não quanto ao que se pode ou não veicular, mas quanto à responsabilidade pelo que é veiculado.

Retomando o caso do Sr. Antonio Luiz Zambelli: o veiculado sob amparo distorcido do dispositivo constitucional da liberdade foi calúnia, resultando em duas ações judiciais de número: 016707-51.2009.8.26.0100 (no TJ-SP) contra a Rede Globo e 0033074-31.2011.8.02.0001 (no TJ-AL) contra a Fazenda Pública de Alagoas. Veja o paradoxo: a Rede Globo diz não ser responsável por Danos Morais, mesmo divulgando calúnia porque a “informação” adveio de investigação policial; o estado de Alagoas diz não ter responsabilidade porque a investigação existiu e não pode controlar a veiculação pela imprensa. A quem restou o prejuízo material e moral: a Sr. Zambelli.

Qual a razão desta distorção tão grave? Primeiramente a distorção da própria Constituição, pois, ao mesmo tempo que esta assegura à imprensa seu sagrado direito e nossa necessidade de liberdade de expressão, esta também recorda, no mesmo art. 5°: “direito de resposta proporcional ao agravo, além de indenização” (inciso V) e privacidade (inciso X).

Por que, porém, à Rede Globo assiste razão em caluniar, mas ao Sr. Zambelli não coube o mesmo direito à retratação pública por parte desta? Pior: com base em que o Judiciário esquiva-se de agir ao tutelar iguais direitos constitucionais? Há direitos e direitos, cidadãos e cidadãos?

Aliás, nestes tempos estranhos em que vivemos, podemos ir além, recordando outro abuso cometido com o auxílio das mídias, incluindo a Rede Globo: o Magnífico Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Sr. Luiz Cancellier [2]. As mesmas perguntas são pertinentes: por que este pôde ser caluniado ao ponto de cometer suicídio, mas seus algozes não podem ser questionados quanto aos seus abusos? Aliás, estamos com a Guarda Pretoriana (Polícia Federal) em ação, algo sobre quê escreveremos em breve.

Poderíamos falar sobre a questão em muitos lugares. Porém, como os brasileiros são viciados nos estadunidenses, falemos sobre estes apenas. A Constituição deste país, uma das mais antigas ainda vigentes no mundo, é de 1787 e tem algumas poucas Emendas, sendo a principal destas a sagrada para os Estados Unidos da América, a I que assegura liberdade quase irrestrita, inclusive de imprensa. Contudo, este país tem regulação sadia das mídias, não por uma Lei específica, mas, como é próprio do sistema Commom Law de Direito, por regras incorporadas ao longo da história que criam ethos quanto ao que é aceitável ou não na prática da liberdade de imprensa.

Algo que não é permitido, desde os anos 1930, segundo Saraiva (2008, p. 200) é a criação de Impérios Midiáticos, ou seja, no país que é baluarte da liberdade e do dito neoliberalismo econômico, jamais existiria Organizações Globo com este porte, dominando mercado editorial, audivisual, rádio, televisão, cinema, internet, TV por assinatura etc.. As Organizações Globo alcançam cerca de 60% dos lares brasileiros, logo, aproximadamente 80% da sua população (estimativas), além de invadir lares de brasileiros expatriados.

Assim, em palavras simples, por não existir regulação das mídias no Brasil, somos censurados por esta no Brasil, especialmente pelo Império Globo que dita a pauta do entretenimento, cultura, notícia, pensamento: esta tem poder maior que a maior religião nacional, a saber, a Igreja Católica. Seu alcance em termos de poder simbólico, político, econômico e cultural constitui a política econômica, social e cria governantes, bem como os derruba segundo seus interesses, pouco importando as necessidades nacionais.

Portanto, ou o Brasil avança esta discussão, que está atrasada e que já deveria ter sido resolvida em 1988, ou continuaremos a ver outros ‘Zambelli’ sendo caluniados pelas mídias sem a devida contra-partida. Afinal, num país que permite a existência de Império Midiático que tem poder supra-nacional, este não é quarto Poder na República, este é superior à República, estando o povo sob os grilhões dos que detêm o poder simbólico da informação. Marcio José Silva é assessor Pedagógico na Oxford University Press, graduado em Letras e Ciências Sociais, Mestre em Educação, Arte e História Da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, possui MBA em Gestão Escolar e atualmente cursa direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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