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Juca Kfouri: “Vini Jr estabeleceu um marco, daqui pra frente será diferente”

Ele mostrou em rodeios, a relação entre extrema direita e o racismo e disse o que espera agora


Foto: DivulgaçãoKfouri e Vini Jr
Kfouri e Vini Jr

Fórum - Um coro de “macaco, macaco” ecoou pelos quatro cantos do mundo. Da belíssima Valência, na costa mediterrânea espanhola, o insulto racista provocou um verdadeiro terremoto e transcendeu as fronteiras do esporte, arrastando consigo o mundo político, as relações diplomáticas, as redes sociais e tudo que encontrou pela frente. O alvo, o atacante brasileiro Vini Jr, do Real Madrid, em questão de horas virou símbolo de uma luta que nada tem de nova.

Para falar sobre o episódio horrendo, que não foi primeiro contra o atleta, a reportagem da Fórum ouviu um veterano do mundo da bola, o decano do jornalismo esportivo brasileiro, Juca Kfouri. Para ele, é indissociável o recrudescimento desse tipo de atitude e a ascensão recente da extrema direita em inúmeras nações do globo.

Um dos poucos profissionais de imprensa de sua área a abertamente opinar sobre aspectos políticos e ideológicos presentes no futebol, o experiente jornalista que já cobriu direta e indiretamente 14 Copas do Mundo concedeu uma entrevista em que expôs suas expectativas futuras após o lamentável ocorrido que vitimou Vini Jr, assim como falou da reação do governo Lula e dos desdobramentos no campo das relações internacionais, já que a Espanha virou centro de uma enxurrada de críticas pelos repetidos casos de racismo em sua liga profissional.

Você considera que esse último caso, que ocorreu com o Vini Jr, pode ser um ponto de virada na luta contra o racismo no futebol mundial?

JK – “Eu não tenho dúvida disso. Eu acho que esse rapaz estabeleceu um novo marco. Veja bem, primeiro, pra ficar só no campo do esporte, ele conseguiu, coisa rara, anular um cartão vermelho. Ele conseguiu a interdição do setor pelo qual ele foi majoritariamente ofendido no estádio Mestalla, ele conseguiu uma multa de R$ 250 mil aplicada ao Valência, ele conseguiu declarações fortes do presidente da Federação Espanhola de Futebol contra o presidente da La Liga, que é um fascistinha. Ele conseguiu, hoje, que a ONU se manifestasse repreendendo as entidades esportivas que a ONU considera até hoje complacentes com o racismo. E o que ele fez e conseguiu extrapolou muito a Espanha, porque ele está recebendo manifestações de solidariedade no mundo inteiro. Ele conseguiu despertar, inclusive no Brasil, manifestações políticas de jogadores, como fez o Deyverson no jogo Cuiabá e Cruzeiro, e como fez ontem o Paulinho, o gesto do poder negro, que era o gesto do Reinaldo durante a Ditadura Militar. Ele fez o presidente Lula se manifestar, o Itamaraty chamar a embaixadora espanhola a dar explicações, enfim... Ele fez um golaço, ele vai sim marcar a diferença daqui para frente, não tenha dúvida nenhuma.”

Na sua visão, esse problema, que sempre existiu em todas as esferas das sociedades, foi potencializado com a ascensão da extrema direita em vários países?

JK – “Eu penso que sim. Na verdade, o que nós temos visto mundo afora é a perda de pudor do pensamento da extrema direita, se assumindo como as bestas-feras que são. Veja, esse presidente da La Liga, este Javier Tebas, já deu entrevistas a rádios espanholas se dizendo contra imigração, contra a punição de crimes de violência doméstica, porque diz que isso prejudica os homens, contra o casamento de pessoas do mesmo gênero, enfim, esta gente está aí... Coisas que eram ditas à boca pequena, que as pessoas tinham vergonha de falar, agora estão sendo ditas com absoluta clareza, publicamente. Quer dizer, nós temos aí um embate ideológico que realmente transcende se comparado a outros tempos, porque as pessoas perderam a vergonha cara, perderam o pudor, e nesse aspecto as redes sociais, ou redes antissociais, tiveram um papel muito importante... Nós descobrimos que temos saudosistas do Hitler, do Mussolini, e deste tipo de pensamento, e eles são muito mais do que nós imaginávamos. Mas isso também permite que a luta se dê sob a luz do sol, o que nesse aspecto para mim é muito positivo, que o mundo civilizado possa ter clareza sobre qual é o tamanho desse fenômeno e como enfrentá-lo.”

Como você vê a normalização de um sujeito como Javier Tebas Medrano, um fascista assumido, à frente de uma entidade tão importante como a La Liga? A sociedade deveria se preocupar com isso, com gente em cargos tão importantes e sendo adeptas de uma ideologia tão sinistra?

JK – “Isto é uma realidade do esporte desde sempre, infelizmente. Desde sempre. Lembremos do ex-presidente do Comitê Olímpico Internacional, um espanhol também, e franquista, Juan Antonio Samaranch. Lembre-se do João Havelange, que andava de braços dados com todos os ditadores do mundo, fazendo Copa do Mundo na Argentina do Videla (Jorge Rafael). Lembre-se de José Maria Marin, que foi um dos aparteadores do Wadih Helu, que resultou na prisão e morte do Vlado (jornalista Vladimir Herzog). Infelizmente, o mundo do esporte, a cartolagem esportiva, com raríssimas exceções, não é apenas conservadora, é profundamente reacionária. E sempre foi. Os exemplos de cartolas progressistas você conta nos dedos de uma mão. Agora, sem dúvidas é preciso estar alerta para isso e denunciar. É preciso, sobretudo, fazer frente a isso. Mas assim, a maneira como é conduzida a superestrutura do esporte é que leva a isso, até porque o que você infelizmente encontra na maioria dos casos de dirigentes é gente que se aproveita do esporte para enriquecer e para defender privilégios.”

A ação do governo brasileiro, vista até como muito dura por alguns atores políticos e do esporte, se justifica? É esse mesmo o caminho?

JK – “É sim. Ali, o Brasil se sente ofendido que um filho seu seja tratado dessa maneira num país estrangeiro. Filho este que só faz distribuir alegria pelos campos do mundo e que foi vítima, e tem sido vítima, porque no caso dele não é um episódio isolado, é pelo menos a décima vez que ele foi vítima desse tipo de ofensa... Então eu acho que essa é uma maneira de você proteger um nacional, de você proteger os seus. De dizer, ‘olha, o Brasil não aceita isso’... Você viu que a CBF o consultou o Vini Jr sobre um amistoso, porque terá um amistoso do Brasil com a Espanha, e perguntou a ele ‘você se incomoda com isso, acha que deve manter, ou suspendemos?’, e ele disse ‘ok, faremos’... Isso nunca aconteceu, de você consultar um atleta pra saber se deve ou não fazer um amistoso que significa entrar dinheiro ou não nos cofres da CBF... Confesso a você que eu não tenho mais nenhum motivo para estar otimista, mas definitivamente eu reconheço que o Vini Jr estabeleceu um novo marco. Daqui para frente as coisas serão bem diferentes nesse campo.”

E quanto às autoridades espanholas? O que deve ser feito em nível governamental por uma nação que se jacta de ser uma democracia moderna?

JK – “Antes de tudo precisa ficar bem claro que este problema não é exclusivo da Espanha. Este é um problema mundial, é um problema brasileiro, não é? E hoje nós temos também esse tipo de problema em nossos estádios, e fora deles principalmente... E nós até hoje não libertamos os nossos escravos, e você sabe muito bem disso tudo... Agora, acho que o próximo passo, e eu estou até escrevendo sobre isso para amanhã, para a Folha, é parar o jogo. É isso, ir às autoridades, ‘ah, aconteceu isso no estádio’... Pare o jogo imediatamente. Aí vai todo mundo para o vestiário e depois vai embora pra casa. Fazendo isso, você acaba estimulando que o cara do lado policie o racista. Ele vai ser o primeiro a dizer ‘pô, não começa com essa porque vai parar o jogo’. Se não houver atitudes de ruptura, como essa, não vai mudar nada... Se começa ‘mono, mono, mono’, ou ‘bicha, bicha, bicha’, que pare o jogo na hora! Vamos embora, todos para casa, não vai mais ter jogo. E o dono do estádio perde os pontos. Só isso será capaz de mudar, porque você silencia essas vozes nos estádios de futebol. E as autoridades precisam estimular isso... Isso é crime, é um crime e ponto.”

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