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Desinformação com Pedigree: o contador, o PCC e... Lula?

O que torna a informação jornalística confiável é o fato de ela se basear em definições e normas claras

 

Por Afonso de Albuquerque, no 247  

Foto: DivulgaçãoContador
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Por Afonso de Albuquerque, professor, no 247

A epidemia de desinformação apresenta um problema gigantesco para a saúde das democracias no mundo atual. São poucos os que discordariam dessa afirmação. Contudo, as divergências se tornam mais significativas quando se trata de discutir as causas do problema: por que a epidemia de desinformação nos atingiu com tanta força? A resposta que se tornou dominante enfatiza o avanço das mídias sociais e a perda de controle da informação a ele associado. Em um cenário de hiper abundância de informações, como decidir quais são verdadeiras e quais não? Essas circunstâncias ofereceriam, então, uma oportunidade ímpar para aproveitadores de todos os tipos, que, usando as mídias sociais, se articulariam para distribuir desinformação em interesse próprio. O “gabinete do ódio” que ajudou a eleger Jair Bolsonaro em 2018 é um dos exemplos mais evidentes.

Tudo isso é verdade, mas essa não é toda a verdade. A explosão da desinformação se beneficia de um outro fator, ainda mais fundamental: as instituições que deveriam providenciar ao público informações confiáveis muitas vezes não o fazem. Seja por incompetência, má-fé ou uma combinação desses dois elementos, conteúdos de caráter desinformativo são muitas vezes distribuídos por veículos da imprensa tradicional. A sua diferença para as peças de desinformação patrocinadas pelo “gabinete do ódio” é simplesmente uma questão de pedigree. A notícia “Contador ligado a Lula é suspeito de lavar R$ 16 milhões em loteria com PCC” – publicada pelo “Estadão Conteúdo” e repercutida por diversos veículos da mídia tradicional –  ilustra esse princípio à perfeição.

Senão vejamos: o que torna a informação jornalística confiável é o fato de ela se basear em definições e normas claras. Um exemplo concreto é o conceito de notícia. Notícias são informações verificadas sobre acontecimentos relevantes. Duas consequências seguem essa definição. Em primeiro lugar, notícias se referem a algo que aconteceu concretamente, no mundo real. Na tradição do jornalismo dos Estados Unidos, a notícia deveria buscar responder a seis questões fundamentais, relacionadas aos acontecimentos em foco: quem fez o que, quando, onde, como e por que? Cinco dessas questões seriam propriamente informativas, passíveis de serem checadas, enquanto a última seria mais especulativa. Notícias não deveriam ser sobre qualquer assunto, mas sobre assuntos relevantes para o público. A relevância das notícias é um elemento fundamental da vocação de serviço público do jornalismo. Finalmente, as notícias têm regras claras sobre como colher e tratar as informações. As informações se baseiam em fontes confiáveis. As ilações apresentadas nas matérias se baseiam nessas informações. Como isso se aplica a notícia sobre a relação entre Lula, o contador e o PCC?

Comecemos do básico: o acontecimento. A que acontecimento se refere a notícia? O Departamento Estadual de Investigação sobre Narcóticos (Denarc) pediu os bloqueios dos bens do contador João Muniz Leite, suspeito de fraudes em loterias federais e participação de um esquema de lavagem de dinheiro do qual faria parte o já falecido Anselmo Becheli Santa Fausta, reputado como um dos principais fornecedores de drogas do PCC. Segundo as suspeitas dos policiais, esse dinheiro teria permitido a Santa Fausta comprar a empresa de ônibus UFBus, em parceria com outros integrantes do PCC e familiares. A empresa teria um contrato de 600 milhões com a prefeitura de São Paulo e operaria 13 linhas de ônibus na Zona Leste da Cidade. O Ministério Público teria acatado o pedido dos policiais. Esses acontecimentos de fato constam da notícia, mas eles são eclipsados por duas informações que nada têm a ver com o acontecimento: 1) João Muniz Leite teria trabalhado como contador de Lula entre 2013 e 2016; 2) o prédio onde funciona a empresa de Leite também sedia empresas de Fábio Luis Lula da Silva, filho de Lula.

A notícia divulgada pelo Estadão Conteúdo se organiza em cinco partes. A primeira sintetiza a informação. Ela consta de três parágrafos, dos quais dois tratam do acontecimento propriamente dito. Leite participaria de um esquema de lavagem de dinheiro e suspeita-se que ele teria colaborado com membros do PCC, que lhes permitiu adquirir uma empresa de ônibus em São Paulo. A segunda parte detalha os valores envolvidos no esquema criminoso denunciado pelo Denarc. A terceira explora as ligações entre Leite e Lula, e faz menções às investigações da Operação Lava Jato. A quarta relaciona Leite, Lula, seu filho e a Operação “Mapa da Mina”, ligada à Lava Jato, que investigou “contratos milionários da Oi com empresas de Lulinha”. A quinta parte menciona as relações entre os integrantes do PCC e a empresa de ônibus. 

De um ponto de vista estritamente jornalístico, a segunda e a quinta parte do texto parecem minimamente adequadas. Elas descrevem uma acusação criminal e seus desdobramentos comerciais. Chama a atenção a ausência de questionamento em relação a um aspecto chave: os supostos integrantes do PCC receberam uma concessão da prefeitura de São Paulo para operar uma empresa de ônibus. Se existe algo que poderia merecer melhor aprofundamento, do ponto de vista político, são os critérios utilizados pela Prefeitura de São Paulo para realizar concessões públicas. Este é um questionamento legítimo, à luz das evidências apresentadas.

Não é esse, porém, o encaminhamento da matéria. Ao invés disso, ela foca nas relações entre Lula e seu filho, de um lado, e o acusado, de outro. Existe alguma evidência de que essas relações tenham algum nexo com a materialidade dos acontecimentos descritos? Lula ou seu filho “sabiam” das irregularidades atribuídas ao acusado? Pior ainda, eles teriam se beneficiado delas de algum modo? A resposta para ambas as perguntas é, de acordo com os critérios profissionais do jornalismo, um definitivo não: “Não há menção na investigação do Denarc a Lula e a seu filho, além da coincidência de endereços.”

O que falta na matéria em rigor jornalístico sobra em especulações maliciosas. Nas suas partes 3 e 4, os jornalistas responsáveis pelo texto desancavam investigações da Lava Jato – a operação conduzida por um juiz que o STF declarou suspeito – para acrescentar “evidência” às suas alegações. Ainda mais importante: é uma foto de Lula (e não do acusado) que abre a matéria. Isso não é informação de má qualidade. É desinformação pura e simples. Uma violação grosseira dos parâmetros mais básicos de profissionalismo jornalístico. Em que uma matéria dessas se distingue do material distribuído pelo “gabinete do ódio”? Numa coisa, apenas: é desinformação com pedigree, baseada numa perversão do jornalismo por parte de quem deveria defendê-lo.

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