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Chico Mendes e seu legado em defesa da floresta

Chico continua mais vivo e relevante do que nunca nos conceitos e ideais que ajudou a criar

Foto: Montagem pensarpiauíChico Mendes
Chico Mendes

GGN - O ano é 2021. O desmatamento avança de forma desenfreada na Amazônia. Grilagem de terras e a pecuária levam árvores centenárias ao chão. Incêndios fora de controle. Uma verdadeira vila flutuante formada por balsas equipadas com dragas para o garimpo avança sobre o rio Madeira. Destruição. Uma nova corrida pelo ouro se avizinha, com apoio pesado de várias esferas de poder.

A necessidade de unir forças para lutar contra a destruição da floresta nunca foi tão urgente quanto agora. E talvez em nenhum momento da história recente do Brasil, se faz tão necessário revisitar o legado de um homem simples, que nasceu em Xapuri, no Acre, e que levou para o Brasil e o mundo a mensagem sobre a necessidade do uso sustentável dos recursos da floresta.

Se estivesse vivo, Chico Mendes completaria 77 anos, em 15 de dezembro de 2021. Seu legado deve ser sempre celebrado. O líder seringueiro se levantou contra as condições precárias de trabalho de sua categoria – muitos em estado de semiescravidão. Foi um dos primeiros que teve a coragem de denunciar aqueles que financiavam a destruição da floresta amazônica e que, principalmente, ajudou a criar o conceito das reservas extrativistas, uma área demarcada para que as populações tradicionais pudessem viver da exploração da floresta, de forma sustentável, um conceito que se multiplicou Brasil afora e ajudou a salvar milhões de hectares de vários ecossistemas brasileiros.

Apesar de não estar mais aqui, fisicamente, Chico continua mais vivo e relevante do que nunca nos conceitos e ideais que ajudou a criar e também na realização da “Semana Chico Mendes”, evento que é realizado desde 1989, em Xapuri, para celebrar a memória do ecologista, como conta a filha de Chico, Ângela Mendes.

“A gente está na 33ª edição da Semana Chico Mendes. Ela existe com o objetivo de sempre celebrar o legado do Chico, de dar amplitude, de divulgar as ideias dele, de perpetuar estes ideais para as futuras gerações. Este ano ela acontece de 15 a 22 de dezembro, o período em que a gente celebra o nascimento dele, até a data do seu assassinato”, explica Ângela.

Foto: GGNAngela Mendes
Ângela Mendes

O evento reúniu debates, workshops e palestras sempre com a pauta ambiental. Neste ano, o aquecimento global foi o tema principal. “Quando se fala em crise climática, o modo de vida das populações tradicionais é estratégico no combate a essa crise. Os modos de vida das populações tradicionais se harmonizam com a natureza, elas proporcionam esse equilíbrio que a gente tanto procura, porque quando a gente fala sobre a COP26, ela procura por uma resposta que já existe e que está aqui, que é a valorização dessas formas de se relacionar com a natureza, dos povos indígenas, extrativistas, ribeirinhos e quilombolas”, diz Ângela.

“Se descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta até que valeria a pena. Mas a experiência nos ensina o contrário. Então eu quero viver. Ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero Viver”, disse Chico Mendes em sua última entrevista em vida, concedida ao extinto Jornal do Brasil, que só foi publicada após a sua morte.

Em tom profético, o líder seringueiro sabia que a luta pela preservação da floresta amazônica estava longe do fim. E ela continua nos dias de hoje. Nada mais apropriado, em se tratando do desmantelamento das políticas ambientais, promovido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).

“A mensagem do Chico é absolutamente necessária. Hoje nós estamos numa situação muito semelhante ao pré-assassinato do Chico (…) A situação hoje é caótica, nós temos um governo voltado a destruição, um governo genocida”, aponta o advogado Gomercindo Rodrigues, o Guma, que ressalta que o governo federal não respeita as populações tradicionais indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, povos da floresta, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores, os coletores de caranguejo, as populações que utilizam o meio ambiente de forma sustentável. “Essas populações estão sendo pressionadas de todas as formas com apoio do governo aos grandes grupos econômicos, aos assassinos, garimpeiros, as milícias, enfim (…) as ideias que Chico defendeu, que é possível usar o meio ambiente de forma sustável, são totalmente atuais.”

Julia Feitoza, do Comitê Chico Mendes, também lamenta o cenário atual. “Hoje está sendo desconstruído tudo aquilo que a gente criou. Hoje há um projeto para regularizar invasores de terras na Reserva Extrativista Chico Mendes, em vez de retirá-los. Não precisa os fazendeiros invadirem a reserva, mas eles não respeitam isso, eu acho que nós temos que continuar firmes, resistindo, tentando impedir esse tipo de ação”, opina.

Para a filha do ecologista, o Brasil de 2021 é cada vez mais parecido com o de três décadas atrás. “A gente faz essa volta ao tempo e se vê naquele período, com tantas ameaças, só que agora a gente tem algo que é muito perigoso que é a presença do estado ou ausência, dependendo do ponto de vista”, analisa.

De acordo com Ângela, o governo federal se faz presente no sentido de desconstruir políticas públicas de proteção ambiental, mas, por outro lado, se mostra ausente quando o assunto é o amparo aos povos indígenas, populações tradicionais. “O governo é muito ativo para beneficiar categorias que historicamente sempre foram opressoras dessas populações tradicionais, como são os   garimpeiros, pecuaristas, madeireiros ilegais que tem o poder neste governo”, atesta Ângela Mendes.

Em meio a um cenário de tantas incertezas com o desmantelamento de políticas ambientais no governo de Jair Bolsonaro, existe entre os ambientalistas e entre os povos tradicionais, uma certeza: nem mesmo a morte vai silenciar a voz daqueles que lutam pela floresta.

“O Chico não está morto, porque se ele estivesse morto, 33 anos depois você não ia estar me ligando para saber da história desse cara, que mudou a história de como se olha para a Amazônia. Quem atirou no Chico Mendes errou o alvo, errou o tiro. Aqueles que pensam que o mataram, na verdade o tornaram imortal”, finaliza Gomercindo Rodrigues.

Foto: GGNGomercindo Rodrigues
Gomercindo Rodrigues

Trabalhadores Rurais

A história de Guma, hoje com 62 anos, se cruza com a de Chico Mendes, no ano de 1986. Recém-formado em agronomia, o sul-mato-grossense mudou-se para o Acre em busca de trabalho e conheceu Chico durante os encontros de trabalhadores rurais, do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

“Em 1986 fui ajudar a avaliar um projeto que tinha lá (em Xapuri), que era o projeto seringueiros, do sindicato, que tinha alfabetização de adultos nas escolas, e a experiência com pequenas cooperativas. As escolas iam muito bem, mas já as pequenas cooperativas que tinham sido criadas, não tinham dado certo. Me chamaram como agrônomo para eu avaliar”, lembra Gomercindo.

Depois de avaliar os projetos, o agrônomo identificou o que estava errado, apontou as necessidades de mudanças e, com isso, acabou sendo convidado por Chico a atuar em Xapuri, junto aos trabalhadores rurais, para recriar essas cooperativas. “A partir daí ficamos muito próximos”, conta. A amizade durou até o fim da vida do líder seringueiro.

Para Gomercindo, e para muitos que conviveram com Chico, ele era um homem à frente de seu tempo. “Ele conseguia ver lá na frente. É impressionante. Inclusive, depois que ele foi morto, fui pesquisar o período em que ele foi vereador em Xapuri, na Câmara, e vi que tinha registros de forma resumida nas atas, que ele já levantava questões em 1979, 1980, para falar em defesa da Amazônia. Era uma coisa assim muito distante, as pessoas não discutiam aqui essa coisa de preservação da Amazônia, isso era coisa de intelectuais, de entidades localizadas fora do Acre. Ele era um cara à frente do tempo”, descreve.

À frente de seu tempo, mas um homem de comportamento tranquilo, paciente e que adorava jogar dominó nas horas vagas. “Ele tinha respaldo porque sabia ouvir, e ele buscava aliados o tempo inteiro. Ele começou a viajar mais de 1986 até 1988, e ele sempre dizia: nós precisamos ampliar nosso leque de aliados. Ele ia para o Rio de Janeiro, São Paulo, para as universidades na USP, UFRJ. Ele conseguiu articular e juntar toda essa turma, conseguia fazer superar as divergências”, conta.

Chico tinha trânsito e conseguia dialogar de igual para igual com professores universitários, estudantes, cientistas e seringueiros analfabetos. “O Chico tinha uma coisa que poucas pessoas têm. A facilidade de compreender os diferentes, mas o que nos junta nessa diferença é uma coisa comum, que é a defesa da floresta, defesa da vida, então o Chico tinha essa facilidade dessa convivência, de juntar as pessoas, de compreender o que cada um pode fazer. Como é que alguém lá daquele seringal, que aprendeu a ler com uma pessoa que passava lá, como é que ele tem essa visão? A luta pela floresta,  de que todo mundo tem que estar junto, os seringueiros, os índios, os quebradores de coco, os negros, os quilombolas. Tem que ser alguém que está além do seu tempo, uma pessoa que não está pensando no umbigo, está pensando no futuro, eu considero o Chico essa pessoa”, descreve a militante Julia Feitoza, que conheceu Chico, nos tempos de universidade, quando ainda era acadêmica do curso de História, e que junto com ele, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), no Acre.

Chico Mendes foi assassinado na quinta-feira, 22 de dezembro de 1988, apenas sete dias após seu aniversário de 44 anos. Gomercindo esteve com ele minutos antes do crime e lembra ainda hoje de cada detalhe daquele dia. “Eu tinha estado com ele minutos antes. Dia 15 que é aniversário dele, a gente fez uma festinha, um bolo, só os amigos… foi quando ele ganhou a toalha que ele estava no ombro quando levou o tiro”, recorda.

Gomercindo conta que achou estranha a movimentação de pistoleiros na cidade de Xapuri, nas vésperas do crime. Eles, que sempre rondavam os mesmos lugares, onde jogavam sinuca e tomavam cachaça, haviam desaparecido. Guma lembra que estava angustiado nos dias que antecederam o crime.

O cerco ao líder 

No dia 21 de dezembro de 1988, Chico chegou a Xapuri – depois de viagens onde foi palestrar – a bordo do primeiro caminhão da cooperativa que ajudou a fundar. O caminhão “novinho”, como lembra Guma, era o símbolo de uma grande conquista para os trabalhadores rurais de Xapuri. Para celebrar a conquista, Chico abriu a boleia do caminhão para que as crianças da cidade pudessem dar um passeio. Foi uma grande alegria.

No dia seguinte, Guma foi até a casa de Chico e reforçou a preocupação com os pistoleiros. Foi recebido com um sorriso largo no rosto, e um convite para se sentar à mesa, onde o líder seringueiro jogava dominó com os policiais que faziam a sua guarda pessoal. “Ele me convidou para jogar. Eu não sei jogar dominó, e a esposa dele veio e disse: – Olha, eu quero botar a janta porque vai começar a novela e eu quero assistir”.

Era o penúltimo capítulo da novela “Vale Tudo”, sucesso absoluto de audiência na época, por conta do mistério sobre a morte da personagem Odete Roitman – interpretada pela atriz Beatriz Segall. 

Chico convidou Guma para jantar, mas ele, preocupado, decidiu fazer uma última ronda na cidade para averiguar a movimentação dos pistoleiros. Pegou a moto e foi até o centro. “Rodei pela cidade toda, os locais que a gente sabia onde os caras estavam. Eles estavam de olho na gente, mas a gente estava de olho neles. Era uma questão de sobrevivência. Os lugares onde eles jogavam sinuca estavam às moscas”, lembra.

Dez minutos depois, Guma voltou para a casa de Chico. Xapuri era uma cidade menor do que é hoje. Foi tempo suficiente para que o líder ecologista fosse baleado quando saia de casa para tomar banho.

“Quando eu vim chegando na frente da casa dele, com a minha moto, a mulher dele saiu gritando: ‘Guma, atiraram no Chico!’. Eu olhei para trás, uns 50 metros, havia dois policiais civis na calçada. Eu olhei e falei: ‘Seus filhos da puta, não vão fazer nada, não?’”, conta.

O líder seringueiro chegou a ser levado para o hospital. Guma começou a ligar para todos para avisar sobre o atentado, até receber a notícia, pelos médicos, de que Chico estava morto. “Entrei no hall do hospital. Numa sala ao lado, ele estava numa maca. Todo lado direito do peito estava repleto de chumbo (devido ao tiro de escopeta). Ele estava só de short porque estava saindo para tomar banho, e ele estava morto. Ainda hoje é muito difícil pra mim. Passaram-se 33 anos, mas é como se eu estivesse lá”, recorda.  

Foto: GGNCondenados
Condenados

O assassinato do líder seringueiro repercutiu internacionalmente. A esta altura, Chico já era reconhecido inclusive pela Organização das Nações Unidas (ONU). A pressão internacional por justiça fez com que a investigação do caso andasse. O fazendeiro Darly Alves da Silva e o filho dele, Darci Alves, acabaram sendo condenados pelo crime. O pai foi apontado como mandante. O filho, como executor do crime. Os dois foram condenados a 19 anos de prisão em 1990.

Os assassinos de Chico chegaram a fugir da cadeia em 1993 e foram recapturados três anos depois. Darly saiu em 1999 para cumprir o restante da pena em regime domiciliar por conta de problemas de saúde. No mesmo ano, Darci progrediu para o regime semiaberto.

Chico havia sido jurado de morte pelos fazendeiros depois da criação da primeira reserva extrativista de Xapuri. Uma figura-chave para a condenação dos fazendeiros foi a única testemunha do crime, um menino de apenas 14 anos à época chamado Genésio Ferreira da Silva.  Ele conta que conheceu o ecologista e que recebeu, dele, o primeiro abraço em toda a sua vida.

“Hoje o Chico é um herói vivo. Ele é um mártir da floresta, um personagem fundamental aqui na região da Amazônia. Para mim quando eu respiro ar, o Chico Mendes está vivo”, disse a testemunha do assassinato de Chico, em depoimento ao documentário “Genésio – um pássaro sem rumo: a única testemunha do assassinato de Chico Mendes”, produzido pela agência Amazônia Real, no ano de 2018. Genésio vivia na fazendo dos assassinatos de Chico.

Foto: GGNRaimundão
Raimundão

Novas lideranças

Raimundo Mendes de Barros, o Raimundão, primo legítimo de Chico Mendes, foi um dos que lutaram ao lado do ecologista, e que também foram marcados para morrer. Aos 76 anos, ele já venceu um acidente vascular cerebral (AVC) e a Covid-19. Mesmo com a saúde debilitada, continua labutando na roça e mais firme do que nunca em sua militância. Ele, inclusive, reclama do que chama de “ausência de zelo e de responsabilidade” com o legado de Chico Mendes, por parte das novas gerações.

Legado, este, que ele fez questão de ensinar aos filhos, que hoje seguem os seus passos na militância. Rogério Barros e Raimundinho, filhos de Raimundão, seguem hoje o mesmo caminho do pai. “Eu comecei a me envolver vendo meu pai que desde o princípio participou da luta ao lado de Chico. Eles eram primos e eu via toda a emoção com a qual ele falava da história. Como fui o primeiro filho homem dele, com a segunda mulher dele, ele colocou o nome dele em mim, neste caso, automaticamente, já passou a responsabilidade”, conta Raimundinho, de 24 anos, que hoje está à frente da secretaria de jovens rurais da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Acre.

“Apesar desse retrocesso, desmantelo de políticas públicas voltadas para Amazônia, a gente segue firme para que a gente não deixe se perder o legado de Chico e de outros líderes sindicais que perderam sua vida por esta causa”, lembra Raimundinho. A luta segue intacta no sangue da família Mendes, e nas fortes palavras de Raimundão, que conta que ainda hoje recebe ameaças. “Eu não abro mão da luta. Recebo ameaças, mas eu não tenho medo. O tempo em que eu deveria ter pensado em sair dessas coisas já passou”, conclui o primo de Chico Mendes.

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