Pensar Piauí

Belchior: um poeta atemporal

Nosso cancionista estava não apenas entre os grandes poetas em língua portuguesa, mas como um intérprete do Brasil

 

Foto: Montagem pensarpiauíBelchior
Belchior
 

 Por Carlos Carvalho, doutor em Linguísta Aplicada, no 247 

Todas as vezes que autografava um disco, como fez para mim, Belchior costumava escrever: “para fulano, abraços e canções do Belchior”. Abraços e Canções (s/d) é, inclusive, o título de um livro publicado por Ângela Belchior e Estêvão Zizzi, que traz uma entrevista inédita de Belchior. Infelizmente, no dia 30 de abril de 2017, quis o destino que o autor de “Alucinação” partisse. Privada da sua presença física, a Música Popular Brasileira ficou órfã de um dos seus maiores nomes, enquanto nós, fãs e estudiosos de sua obra, perdemos todas as oportunidades de ouvir e vê-lo no palco.

Se vivo estivesse, Antonio Carlos Belchior, nascido no dia 26 de outubro de 1946, completaria 75 anos na próxima semana e, muito provavelmente, estaria cantando e denunciando o estado medonho das coisas que estão engolindo o que ainda resta de decência neste país, como fez em inúmeras de suas canções desde seus trabalhos iniciais até o último. Excetuando-se as coletâneas, edições especiais, participações em discos coletivos e álbuns de outros intérpretes, quinze discos compõem sua discografia oficial; sendo toda ela permeada da mais alta qualidade poética, com reconhecimento de crítica e público.

A poética de Belchior alcançou os mais altos níveis da canção popular, estando qualitativamente no mesmo patamar da produção de Bob Dylan, por exemplo. Trata-se de uma escrita que não cabe apenas na estrutura da canção tal qual a compreendemos, mas de um texto que se eleva ao nível da grande poesia, cujas temáticas são universais e atemporais sem se desconectar da realidade, uma vez que a alucinação do eu-lírico da sua poesia é suportar o dia a dia, e seu delírio é a experiência com coisas reais. E é assim que o poeta deixa claro estar mais interessado em amar e mudar as coisas do que em qualquer forma de teoria, fantasia ou algo mais.

Diante do caos que impera no país, atônitos, nos vemos tão angustiados quanto um goleiro na hora do gol. Contemplamos o rio que corre parado, enquanto a bailarina de pedra evolui. Vivenciamos um tempo tão sombrio em que só sem desejos é que se vive o agora, ou seja, um momento sociopolítico em que a miséria campeia e, no cimento das cidades, nossos pensamentos e nossos sentimentos parecem apenas aguardar o momento de fugir no disco voador. Mesmo assim, como forma de resistência ao autoritarismo que por aqui se estabeleceu, revolucionariamente florescemos apensos ao pé da serra como se Ypê fôssemos.

Para mergulhar mais detidamente na vida e na obra do bardo cearense é possível acessar uma significativa quantidade de trabalhos acadêmicos (monografias, dissertações e teses), que surgem todos os anos e que tomam como objeto de pesquisa as temáticas presentes na obra do referido artista. Como exemplo, citamos dois trabalhos da pesquisadora Josely Teixeira Carlos, que são a dissertação Muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior, defendida na Universidade Federal do Ceará – UFC no ano de 2007, assim como sua tese de doutorado Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior, defendida na FFLCH-USP no ano de 2014.Entre os livros em circulação, citamos: Para Belchior com amor (2016), organizado por Ricardo Kelmer; Alguns (pré)textos nas canções de Belchior num Brasil ufanista (2017), de Eder Deivid; Belchior: a história que a biografia não vai contar (2017), de Jorge Claudio de Almeida Cabral; a biografia Belchior: apenas um rapaz latino-americano (2017), de Jotabê Medeiros; Sujeito de sorte: Belchior e a filosofia como o diabo gosta (2020), de Abah Andrade, Cancioneiro Belchior (s/d), de José Gomes Neto e Viver é melhor que sonhar: os últimos caminhos de Belchior (2021), de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Assim, no ano em que faria 75 anos, já não se pode contar com os abraços do autor de “Velha roupa colorida”, mas será sempre possível ouvir, ler e estudar suas canções; as quais tratam, entre outras coisas, do amor, da morte, das angústias do humano, do estar-no-mundo e da constante indignação perante à opressão. E assim o fez, cantando canções, falando fácil, claro-fácil, claramente, das coisas que acontecem todo dia em nosso tempo e lugar.

As temáticas abordadas por Belchior e a forma como o fez ao longo de toda sua obra poética garantem ao nosso cancionista um lugar não apenas entre os grandes poetas em língua portuguesa, mas permitem que também seja visto como um intérprete do Brasil, uma vez que sua poesia está em conexão com a realidade nacional de diferentes tempos, o que faz dele um poeta atemporal, cujas canções / poemas já são patrimônio imaterial nas mentes e corações de todos nós. No ano em que faria 75 anos de idade, Belchior vive. E, enquanto nosso canto é entre quatro paredes, como se fosse pecado, desejamos tudo, tudo outra vez.  

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