O caso Vitória e o show de horrores da Polícia e da imprensa
A sucessão de vazamentos e especulações desencontradas transformou a investigação do caso Vitória em um espetáculo midiático caótico

Por Cleber Lourenço, jornalista da Fórum
Este jornalista que vos fala não tem o hábito de se debruçar sobre casos nos quais sobram especulações e rumores e faltam provas e evidências. Tampouco sou um fã do jornalismo policial, que, quanto mais escabroso o caso, mais se esbalda em revirá-lo. Mas a condução do caso Vitória Regina de Sousa pela Polícia Civil de São Paulo se tornou um espetáculo tão grotesco que não pode passar sem crítica.
O assassinato de Vitória escancarou o que há de mais problemático na condução de investigações policiais no estado: vazamentos desenfreados, especulações desencontradas e a total ausência de controle sobre a narrativa do caso. O que deveria ser um trabalho meticuloso e discreto, conduzido com profissionalismo, se tornou um circo midiático, no qual a cada dia surgia uma nova tese sobre o crime, apenas para ser derrubada no dia seguinte. Esse é o retrato da Polícia Civil do governo Tarcísio de Freitas, que, ao invés de preservar a credibilidade das apurações, jogou gasolina na fogueira do sensacionalismo.
Desde o desaparecimento de Vitória, o caso foi marcado por informações vazadas de forma irresponsável, tanto por fontes oficiais quanto por supostos "bastidores" dentro da polícia. Houve um desfile de suspeitos — facções criminosas, um ex-namorado, um casal homoafetivo e até mesmo o próprio pai da vítima — que, um a um, foram descartados sem que houvesse qualquer explicação clara ou prestação de contas sobre os motivos que levaram essas hipóteses a serem jogadas para o público em primeiro lugar. Ainda no início da noite desta segunda-feira (17), segundo a imprensa, o próprio principal suspeito, Maicol Antonio Sales dos Santos, teria chegado a "confessar" o crime para parte da imprensa. Outra reviravolta! A Polícia Civil, no dia seguinte, desmentiu a confissão formal.
A condução errática da investigação não parou por aí. A cada nova linha de apuração divulgada, a polícia parecia mais preocupada em alimentar o espetáculo midiático do que em consolidar provas concretas. A especulação sobre a suposta conexão do crime com facções criminosas foi alardeada, apenas para ser desmentida posteriormente. O envolvimento do ex-namorado foi levantado, explorado e depois descartado. Em um dos momentos mais absurdos da cobertura, a apresentadora Patrícia Poeta chegou a informar ao vivo ao pai da vítima que o caso havia sido elucidado e que o crime teria sido cometido por um homem chamado Daniel, que supostamente mantinha um relacionamento com o ex-namorado de Vitória. No dia seguinte, essa informação já estava desmentida.
Além disso, a falta de sigilo impactou a própria investigação. A exposição pública de hipóteses e suspeitos gerou uma série de problemas, desde interferências externas na apuração até a pressão midiática sobre a polícia para oferecer respostas rápidas, mesmo que imprecisas. A cada nova reviravolta, a investigação parecia mais uma novela do que um procedimento sério de apuração criminal. Testemunhas e familiares foram expostos a um linchamento virtual desnecessário e, a cada novo nome citado pela polícia, novas especulações eram alimentadas pela imprensa, sem o devido cuidado com as consequências.
Não há sigilo, não há compartimentalização da informação, não há um critério mínimo sobre o que deve ou não ser divulgado. Investigações são dinâmicas e naturalmente sujeitas a mudanças de rumos, mas esse é exatamente o motivo pelo qual há protocolos de sigilo e preservação de provas. Quando uma polícia permite que a cada dia um novo fato supostamente conclusivo chegue à imprensa antes de estar solidamente embasado, a consequência é o enfraquecimento do próprio trabalho investigativo. Cria-se um ambiente onde qualquer informação pode ser questionada, deslegitimada ou mesmo usada para narrativas conspiratórias. No fim, a verdade se dilui.
Esse não é um erro novo. A Polícia Civil de São Paulo já esteve no centro de coberturas jornalísticas catastróficas que deveriam ter servido de lição, mas que parecem ter sido ignoradas. O caso da Escola Base, em 1994, é o exemplo clássico da destruição de reputações com base em investigações precipitadas e vazamentos irresponsáveis. Ali, donos de uma escola foram acusados de abusar sexualmente de crianças sem qualquer prova concreta, apenas para que meses depois se provasse que tudo não passava de um erro grotesco. A imprensa, ao abraçar a tese policial sem contestação, destruiu vidas. No caso de Vitória, a diferença é que a sucessão de informações desencontradas expôs a vítima e sua família a um turbilhão de narrativas especulativas que só serviram para confundir a opinião pública e prolongar o sofrimento dos envolvidos.
Outro exemplo trágico foi a condução do caso Eloá Pimentel, sequestrada e morta em 2008. A polícia permitiu que a imprensa transmitisse ao vivo toda a negociação com o sequestrador, Lindemberg Alves, transformando um crime em entretenimento. Em vez de agir com discrição para garantir um desfecho seguro, a Polícia Militar assistiu inerte à exposição do caso, e o resultado foi um desfecho desastroso, com a morte da vítima. A lógica midiática se sobrepôs à lógica investigativa e operacional.
No caso Vitória, o mesmo roteiro se repete. A polícia do governo Tarcísio parece mais preocupada em dar respostas instantâneas para a imprensa do que em garantir uma investigação eficiente. Esse jogo de manchetes e versões contraditórias não só prejudica a resolução do crime, mas coloca em risco a credibilidade da própria instituição. Quando a população não pode confiar que uma linha de investigação tem respaldo concreto, abre-se espaço para teorias da conspiração, linchamentos virtuais e uma desmoralização generalizada do trabalho policial.
A maneira como o caso Vitória foi conduzido não é apenas uma falha, mas um alerta. A exposição irresponsável da investigação, a multiplicação de hipóteses sem confirmação e a falta de coordenação entre os investigadores e a comunicação oficial criaram um ambiente caótico, onde a verdade se tornou secundária diante da necessidade de alimentar o espetáculo midiático. Essa é a polícia do governo Tarcísio: confusa, contraditória e mais preocupada com a repercussão do que com a resolução. Se há algo que esse caso ensina é que a lição da Escola Base e do caso Eloá nunca foi aprendida. E o resultado disso é um espetáculo que, ao invés de trazer justiça, transforma a tragédia em um teatro de horrores.
Enquanto isso, os familiares das vítimas são obrigados a reviver diariamente a dor da perda, acompanhando um festival de manchetes que, em vez de buscar justiça, prioriza o entretenimento da audiência. Essa irresponsabilidade precisa ser questionada. A polícia não pode ser refém da mídia, nem a mídia pode transformar tragédias em espetáculos. Se o caso Vitória nos ensina algo é que precisamos urgentemente de uma imprensa mais responsável e de uma polícia mais comprometida com a verdade do que com a manchete do dia.
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