Entrevista com AJM: história, CEPAC, PT, Educação e outros temas
Entrevista realizada por: Liege de Souza Moura Antônio e veiculada inicialmente pela REVISTA HUMANA RES, da UESPI
Entrevista realizada por: Liege de Souza Moura Antônio e veiculada inicialmente pela REVISTA HUMANA RES VOL.6 Número 9
José Castelo Branco Medeiros é um sociólogo e político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores - PT, com atuação política no Piauí, desde a década de 1980. Antes de ingressar na política, teve uma importante participação na formação sindical piauiense e, depois dos anos de 1980, conjugou atividades administrativas e políticas no Estado do Piauí. Professor Antônio José, antecipadamente agradecemos a sua disposição em conversar com os leitores da Revista Humana res, publicação eletrônica, de acesso livre, vinculada ao Centro de Ciências Humanas e Letras da UESPI, criada com finalidade de promover o debate e a reflexão em torno de questões teóricas e práticas nos campos das ciências, das tecnologias e das artes.
HR- É com muita satisfação que gostaríamos de iniciar essa nossa conversa pelo contexto de sua formação intelectual, escolha da área de formação, os debates, os interlocutores, as aspirações teóricas, o que era a Universidade naquele momento... Enfim, quais as influências que mais impactaram na formação do seu pensamento?
AJM – Gosto de começar pela infância, pois tive o privilégio de, numa cidade do interior, em 1954, frequentar a educação infantil: o Jardim da Infância, no Patronato Maria Narciso, em União. Agora, 70 anos depois, é que a educação infantil está se universalizando. Em segundo lugar, fiz o ginásio no Seminário Arquidiocesano, em Teresina, de 1961-1964, que era uma “escola de tempo integral”. Éramos internos, tínhamos aulas intercaladas de manhã e de tarde, tínhamos um salão de estudo com mesas individuais e fazíamos diversas outras atividades esportivas, culturais e de engajamento pastoral e social. Sou um defensor da universalização da escola em tempo integral. O programa na rede estadual do Piauí é ousado; mas o programa federal é tímido. Saí do Seminário e fiz o científico (ensino médio) no Colégio Diocesano. Queria fazer Pedagogia, mas não tínhamos nem Universidade nem Faculdade de Educação em Teresina. E eu não tinha condições de estudar fora, mesmo em Fortaleza. Fiz então licenciatura em Filosofia, na Faculdade Católica de Filosofia do Piauí (FAFI). A UFPI ainda não tinha sido instalada, embora tenha sido criado em 1968; tanto assim que meu diploma em 1971 já é pela UFPI. A FAFI ainda seguia a orientação aristotélico-tomista, mas já estava se diversificando. Tínhamos manuais completos com todas as áreas da filosofia: Jolivet, Carosi, Verneaux. Mas já se adotavam livros de discípulos de Ortega e Gasset como Garcia Morente e Julián Marias. Em História da Filosofia era adotado Sciacca e Hirschberger, mas já havia a adoção de textos modernos. Na licenciatura em Filosofia se estudava e se debatia muito sobre educação, educação popular: Paulo Freire, Anísio Teixeira, Lauro de Oliveira Lima, Dewey, Rogers, Piaget, Skinner; o Vigotsky ainda não era conhecido. Quando terminei a faculdade, fui para o Rio de Janeiro. Queria fazer o mestrado em Educação na PUC. Mas, ganhei uma bolsa, através de Dom Avelar, para fazer uma especialização em “Realidade Nacional e Desenvolvimento” no IBRADES – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento, dirigido pelos Jesuítas. Nunca estudei tanto na minha vida; almoçávamos no Instituto e tínhamos aulas intercaladas de manhã e de tarde. No primeiro semestre, era introdução à economia, à sociologia, à política, à antropologia, à teologia, metodologia de pesquisa e educação. E no segundo semestre: economia brasileira, sociedade brasileira, política brasileira, cultura brasileira, igreja no Brasil e educação brasileira. Tivemos como professores Padre Ávila (sociologia), Hélio Jaguaribe (política brasileira), Luiz Costa Lima (cultura brasileira), Vanilda Paiva (educação brasileira). Foi a minha passagem para as Ciências Sociais. Tanto assim, que, no início de 1973, fiz a seleção para o mestrado em sociologia no IUPERJ – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e fui aprovado. Três anos depois, deixei tudo e fui para o Canadá, atravessando de ônibus a América Central e os Estados Unidos. Aventura. Trabalhei como operário. Por sugestão de colegas exilados, fiz seleção e novos créditos do mestrado em Sociologia na Universidade de Ottawa, bilíngue inglês-francês. Voltei pro Piauí e não terminei a dissertação, pois fui vetado pelo SNI para entrar na universidade, que não fazia concurso na época. Até que o reitor Camilo Filho queria que eu entrasse. De fato, só vim concluir o mestrado em Ciências Sociais na PUC de São Paulo, em 1993. Fiz os créditos de doutorado em Sociologia na USP (1994-1998), sob a orientação do querido professor Chico de Oliveira; e muito depois na UnB (2013-2015), fiz o doutorado na área Planejamento Regional do Departamento de Geografia, sob a orientação da professora Marília Steinberg. Mas nunca defendi a tese. São dez anos de estudos pósgraduados, seis dos quais antes de entrar ou depois de sair do quadro de professores da UFPI. E são 19 anos de magistério na área. Ao contrário do Paulinho da Viola, “não tinha eu que ser doutor”. Quem sabe? Me considero profissionalmente sociólogo, embora nunca tenha perdido a imaginação filosófica. Por isso me identifico muito com a tradição da Teoria Crítica em ciências humanas e sociais, não limitada apenas à Escola de Frankfurt.
2 HR - Fale um pouco sobre a convergência entre seu mundo intelectual e a política, expressando como se deu esse encontro.
AJM - A minha formação no Seminário coincidiu com o Concílio Vaticano II, um momento de “aggiornamento” (atualização) da Igreja Católica, com os Papas João XXIII e Paulo VI. Houve atualização e avanço também na doutrina social da Igreja, com as encíclicas Mater et Magistra, Pacem in Terris e Populorum Progressio. E sobretudo com a constituição pastoral Gaudium et Spes do Concílio: “as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens da época atual, sobretudo dos pobres e afligidos de todas as classes, são também as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo”. De forma que fui me politizando. Ingenuamente, achei que o Golpe de 1964 era para evitar o comunismo. Depois percebi que era uma ditadura de direita, que perseguia inclusive católicos progressistas. Fui me politizando mais ainda em direção à esquerda, de forma que comecei a militância estudantil contra a ditadura ainda no Diocesano e depois na FAFI; participei do Congresso da UNE em Ibiúna (SP) em 1968, onde fui preso. Me considerava da “esquerda católica”. Havia um diálogo entre intelectuais católicos (personalistas), existencialistas e marxistas. Li, ainda aluno de filosofia, muitos livros da editora Paz e Terra e da Editora Vozes. Ainda hoje tenho a coleção completa dos 10 números da revista Paz e Terra. Esse diálogo levava a ações conjuntas. Daí começou essa convergência entre o meu mundo intelectual e a política. Nunca fui de nenhuma organização de esquerda clandestina. Respeito quem optou pela luta armada e muitos foram torturados e deram a própria vida na luta. Mas nunca achei o melhor caminho para a esquerda. Poderia ter sido da AP (Ação Popular), pois me identificava com os escritos do Padre Henrique Vaz (que leio ainda hoje, depois de sua morte) e os escritos iniciais dos universitários Herbert de Sousa (Betinho), Luís Alberto Gomes de Sousa, Duarte Pacheco e outros. Mas, após 1968, a AP foi se tornando marxista-leninista-maoísta ortodoxa e depois uma parte dela se fundiu com o PC do B. A AP poderia ter sido um partido de esquerda, laico, democrático e de massas, sem aderir a nenhuma ortodoxia. O PT depois retomou alguns desses aspectos, que, aliás, vêm se enfraquecendo. A teologia da libertação também é herdeira da esquerda católica. Evidentemente, como teologia, jamais poderia ser laica. Minha relação com ela foi mais filosófico-ideológica. Ajudou muito numa leitura mais original da sociedade e mais perto da realidade do povo. Como já disse, o PT expressa, em parte, essa experiência vivida; foi como um sonho que se realizasse.
3 HR- O Senhor iniciou sua vida profissional como professor de Filosofia e Sociologia na Universidade Santa Úrsula e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ambas na década de 1970. Essas experiências foram importantes na definição do perfil do cidadão Antônio José Medeiros?
AJM - Sim. Na realidade, consolidaram-se minhas opções intelectuais e políticas. O grupo de professores na Santa Úrsula era composto de padres, religiosas e leigos de esquerda. Uma disciplina que ministrei para várias turmas se chamava “Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo”. Discutimos temas que começavam a ser levantados: automação, globalização, limites do crescimento, emancipação da mulher, crítica ao eurocentrismo etc.
4 HR- Você tem disposição para falar sobre os anos 1960 - 1970 no Brasil e de sua participação na resistência política ao governo civil-militar?
AJM - Em 1964, eu tinha 14 anos. Mas, aos 17 anos, aluno do Diocesano, junto com um colega Odilon Nunes (já falecido, que anos depois foi preso e torturado na Bahia) fizemos um panfleto contra a eleição indireta do marechal Costa e Silva. A polícia descobriu os autores. O Odilon ficou preso uma semana e eu, como era menor, fui chamado a depor na presença de meu pai e de um advogado que, por sinal, foi o Zé Raimundo (Bona) Medeiros, meu primo. Quando entrei na Faculdade em 1968, o clima era de mobilização no Brasil; houve a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, quando o Vladimir Palmeira no Rio e o Zé Dirceu em São Paulo se projetaram como lideranças estudantis. Minha atuação era no movimento estudantil, centrada na FAFI e procurando articular colegas de outras faculdades. Da Faculdade de Direito, lembro o Nicolau Waquim Neto e o Evandro Cunha e Silva; em Odontologia, era mais difícil: lembro o Luiz Ribamar, hoje no PSB; em Medicina, era mais difícil ainda: mas o José Gonçalves, hoje médico, ainda participou algumas vezes. Eram reuniões preparando com congresso da UNE, promoção de palestras-debate, e concentrações internas na FAFI. Um grupo liderado pelo Benoni Alencar, aluno do Liceu e funcionário concursado do Banco da Amazônia, começou a liderar pichações contra a ditadura e o imperialismo, em vários pontos da cidade. Em reação a uma grande pichação foram presos os “subversivos conhecidos”: Benoni, Geraldo Borges, eu, Ubiraci, Zé Reis, prof. Diogo, Evandro, Luiz Ribamar. Na terceira prisão, fui preso junto com o Benoni, Geraldo Borges e Samuel (hoje jornalista em São Luiz). Ficamos presos nove meses e fomos condenados a esse mesmo tempo. Fomos julgados em Fortaleza, para onde fomos levados algemados Estava em Teresina o Osvaldo (já falecido, que foi torturado aqui em Teresina) e veio o Ventura de São Luiz para organizarmos um comitê de defesa do Osvaldo; na reunião, fomos presos. Já em 1978, depois de voltar do Canadá, fui preso mais uma vez, porque estava hospedado lá em casa o irmão de um amigo do Ceará que, de fato, estava sendo procurado. Fui levado com ele para Fortaleza, e interrogado de olhos vendados, acho que numa dependência do Exército. Pensei que desta vez ia ser torturado. Mas nunca fui torturado fisicamente, em nenhuma das prisões, embora aqui em Teresina, ficasse uma palmatória e um chicote de fios em cima de mesa de quem estava interrogando. Relembro esses fatos e essas pessoas que foram reprimidas com prisão. Mas uma ditadura se manifesta o tempo todo, nos vários ambientes da vida. A repressão e a possibilidade de arbítrio pairam no ar. Acabam as eleições, mandatos são cassados, impera a censura, livros são apreendidos, é estimulada a delação (dedurismo), pessoas são demitidas de seus empregos, etc., etc. Fiz um concurso para o MEC; aprovado em primeiro lugar, nunca fui chamado. Só fiz concurso para a UFPI, em 1981, depois da anistia em 1979. Não pude exercer uma função na COHEBE, em Guadalupe-PI e Nova Iorque-MA, porque o SNI vetou. Não pude ser supervisor municipal de educação em União, quando meu pai morreu em 1973 e a família queria que eu voltasse do Rio de Janeiro. Fui demitido de um cargo em comissão na SEDUC quando o doutor Luiz Pires era Secretário de Educação, por imposição da Guarnição Federal (vi o ofício). Nunca solicitei “pensão de anistiado”, pois tive oportunidade de ter uma carreira profissional. Acho que só devia haver pensão para dependentes dos mortos ou os que ficaram com sequelas que impediam sua vida profissional normal. Que deveria haver apenas uma indenização equivalente ao tempo em que o perseguido ficou sem oportunidade de trabalho.
5 HR- Na década de 1990, sempre que se ouvia falar do Centro Piauiense de Ação Cultural - CEPAC, o seu nome aparecia relacionado a ele. Poderia falar um pouco sobre o trabalho social e político realizado por esse Centro no contexto de sua vinculação?
AJM - Depois do AI-5, no final de 1968, a ditadura entrou em sua fase mais repressiva e violenta, com tortura e assassinatos. O movimento estudantil praticamente paralisou e o movimento sindical também. Houve muitos conflitos no campo por questões de terra, sobretudo no Centro-Oeste e Norte do Brasil. Por volta de 1975, foi-se retomando um trabalho de “política pedagógica”, por influência da Igreja Católica, com as Pastorais Sociais e Comunidades Eclesiais de Base. Havia duas preocupações básicas que atingiram amplos setores além da igreja: primeira, a conscientização, ou seja, o despertar de uma consciência crítica nas pessoas para uma opção pessoal e comunitária na política; e segunda, o apoio ao protagonismo das classes populares, chegando até a um certo basismo. Queríamos superar o populismo da política tradicional (em geral, demagógico) e o vanguardismo da esquerda. Processo que avançou, mas acho que continua necessário até hoje, base para se convencer que a cidadania é o direito a ter direitos.. O CEPAC - Centro Piauiense de Ação Cultural nasceu nesse clima e com essa intenção. Devia se chamar CEPEP – Centro Piauiense de Educação Popular, mas apesar da anistia em 1979, os militares ainda estavam no poder com Geisel e Figueredo, e não quisemos chamar a atenção da repressão. O CEPAC era organizado para assessoria popular, ou seja, cursos de formação, acompanhamento de atividades, apoio jurídica, apoio a lutas concretas, publicações, jornais, em três áreas: sindicalismo rural e associações de produção, sindicalismo urbano e movimento popular, mais especificamente, associações de moradores. Como preocupação transversal, trabalhávamos com a valorização da mulher e contra a discriminação racial. Tínhamos o apoio de entidades de cooperação internacional, ligadas à igreja católica, igrejas protestantes ou laicas. Quem primeiro nos apoiou foi a OXFAM da Inglaterra e o MLAL da Itália, que, inclusive, enviou dois voluntários, Lídia e Graciano, para trabalharem no CEPAC. Tivemos apoio da NOVIB e da ICCO, da Holanda e da FASTENOPFER da Suíça. Atuamos em cerca de 20 municípios com oposições sindicais que ganharam eleições nos sindicatos de trabalhadores rurais. Também apoiamos oposições em sindicatos urbanos contra pelegos famosos. Foi possível então participar da organização da CUT. E surgiu a FAMCC – Federação de Associações de Moradores e Conselhos Comunitários. Estimulamos a organização de Centros de Assessoria Popular em várias regiões: CAMP em Parnaíba, CEPES em Esperantina e CEPAVA, em Valença. Tínhamos articulação com várias entidades nacionais da área de educação popular: IBASE (Liderado pelo Betinho), FASE, INESC, CESE, CEAS, Escola Quilombo dos Palmares, CAJAMAR, CEPES; éramos filiados à ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais. Alguns dos fundadores já morreram: Francisco Passos, Paulo de Tarso Moraes, Manoel Vera Cruz Nery, João Gualberto Soares. Outros membros continuamos no batente: Maria do Carmo Bonfim, eu, Merlong Solano, Suzana Amorim, Sérgio Miranda Gonçalves, Amália Almeida, Rosário Bezerra. E tínhamos um Conselho com muitos membros que não cito para não omitir nomes; destaco apenas o da Regina Sousa. Várias pessoas se formaram nesse trabalho. Destaco um grupo de advogados que começavam como estagiários: Loisima Bacelar, Edilson Farias, Arimateia Dantas, Décio Solano e José Osmar, que continuam atuando como profissionais comprometidos. No início tivemos que trazer uma advogada da CPT da Bahia, a Angélica, para criar esse setor. Vários jovens à época atuaram como estagiários e assessores no CEPAC. Tornaram-se professores universitários e técnicos do serviço público. E várias lideranças que participaram de cursos são dirigentes sindicais, como o Antônio José Rocha, presidente da FETAG e muitos foram ou são vereadores. O Efrem Ribeiro era nosso grande suporte na área de documentação e comunicação. Finalmente estamos terminando de fazer a triagem do material acumulado e repassando para o Núcleo de Pesquisa em História da UESPI< sob a coordenação das professoras Salânia e Cristiana. Já foram mais de 1.500 exemplares de 150 jornais e boletins sindicais e populares. E muitos outros documentos já foram digitalizados e estão à disposição para consulta e pesquisa. Que muito estudos desabrochem!
6 HR- Em que momento o Senhor decidiu que deveria participar de forma mais ativa do campo político institucional, apresentando seu nome para cargos municipais, estaduais e federais?
AJM - Quando falo desse assunto hoje, muita gente não acredita: até a fundação do PT, nunca pensei em ser candidato a nenhum cargo político. Minha intenção era ser um “intelectual orgânico de esquerda”, filiado a um partido: escrevendo, participando de debates, fazendo formação, ajudando na organização e mesmo discursando em eventos, mas sem ser candidato. Sempre rejeitei a ideia de ser “político profissional”. É preciso considerar isso para entender minha trajetória, que assumo com tranquilidade. Em 1982, no encontro estadual, os filiados insistiram para eu ser candidato, pois era a figura mais conhecida do partido; houve um debate: governador ou deputado federal. A maioria votou por deputado federal “porque tinha chance de ser eleito”. Doce ilusão. Logo em 1984, resolvi ir terminar meu mestrado na PUC/SP. Quando foi restabelecida a eleição para prefeito em 1985, o Gualberto foi a São Paulo em nome a Executiva Estadual, para me convencer a vir ser candidato a prefeito de Teresina, para reforçar meu nome como candidato a deputado estadual em 1986. Em 1986, até eu achava que ia eleito; não fui. Em 1988, não queria ser candidato a vereador. Meu nome já não era consenso, era preciso dar vez a outros nomes que tinham se projetado. O Olavo e o Wellington Soares convenceram os participantes do encontro municipal de incluir meu nome. Fui eleito vereador, o mais votado de Teresina. Sabia qual devia ser a trajetória, conforme o costume dominante: deputado estadual (1990), deputado federal (1994) e reeleições em seguida. Não quis ser candidato em 1990 (meio do mandato de vereador) e em 1992 fui candidato a prefeito apenas para segurar a bandeira. Logo em seguida, fui terminar o mestrado e fazer o doutorado; passei cinco anos fora do Piauí. Em 2000, fui candidato a prefeito de União, também para segurar a bandeira. Em 2002, fui eleito deputado estadual e em 2006, deputado federal. Como tive 132.000 votos para federal, o Wellington me disse: você está legitimado para ser candidato a governador. Vários deputados da base conversaram comigo, concordando com a ideia. Em agosto de 2008, tive problemas de saúde e sugeri que o candidato fosse o Antônio Neto, Secretário da Fazenda. O Wellington dizia que ia ficar no governo; depois decidiu ser candidato. Eu mesmo achava que o Wellington devia ser candidato a senador, o Wilson Martins governador e o PT indicava o vice do Wilson. Confirmado pelo Wellington, o Wilson escolheu o Zé Filho (PMDB) para vice. Ganhamos o encontro estadual com a proposta de ser vice ou apresentar candidato próprio. Deu problemas. Participei de uma reunião chamada pela Executiva Nacional e foi proposto lá que fosse candidato a senador. Ainda hoje me arrependo de ter aceitado, apesar de ter tido 412.000 votos. A verdade é que o tamanho de minha ambição pessoal, educada pela visão cristã, não é suficiente para eu lutar pela candidatura a governador. Já tinha decidido não ser candidato à reeleição de deputado federal; o Assis Carvalho foi candidato e foi eleito. Desde então, já estava aposentado e decidi não ser mais candidato a nada. Em 2018, diante dos problemas internos que foram se acumulando no PT e continuam, recebi muita pressão para ser candidato a deputado estadual ou federal. Foi um fiasco: tive 11.000 votos para federal. O PT estava desgastado nacionalmente para atrair o voto de opinião e as bases petistas no Piauí já tinham seus compromissos com outros candidatos. Continuo um militante político, sem participar da direção partidária, e decidido a não ser candidato a cargo político. Isso não afeta em nada o meu estado de espírito. Continuo ativo, interessado nas políticas públicas, embora não esteja participando da administração estadual. Atuo através de uma ONG, o Instituto Presente, incentivando a expansão das escolas de tempo integral nas redes municipais e assessorando as entidades dos catadores de resíduos sólidos.
7 HR – Como você analisa a recepção das bandeiras pelas quais os movimentos sociais dos anos 80 (século XX) lutaram, a exemplo da Reforma Agrária, Educação Pública, Moradia, nas gestões do governo do PT. A herança dessas lutas ainda nos move no presente?
AJM - Acho que o PT não perdeu o seu DNA de compromisso com os trabalhadores e as classes populares. Desde a redemocratização (Constituição de 1988) avançamos em políticas sociais impulsionadas pelos movimentos sociais, mesmo em governos que não são do PT: o Fundo de Participação dos Municípios, o SUS, o FUNDEF, os assentamentos, os conselhos tutelares, etc. têm feito as coisas avançarem de modo mais descentralizado. Mas, a desigualdade social ainda é imensa. A globalização com domínio neoliberal tem criado um ambiente hostil. O crescimento econômico tem sido pífio, a pressão do capital financeiro é ostensiva. Todo dia, santo ou não, a mídia, pressiona o governo com as análises distorcidas do movimento da bolsa e do câmbio. O PT não teve ainda força suficiente para fazer mais. Fico preocupado porque a relação com os partidos tão heterogêneos que se tornam base dos governos não é apenas de aliança em torno de certas propostas. Há muita concessão e assimilação de comportamentos eleitoreiros.
8 HR – Como analisa a Educação Superior brasileira atual? Qual o papel da Uespi nesse cenário para o Piauí? AJM - A Educação Superior no Brasil tem crescido muito. Mas me preocupo com certos estilos de crescimento: o uso da “educação à distância” às vezes sem nenhum momento presencial, sequer para os testes; e os cursos de finais de semana, muitas vezes com uma duração muito curta. E há um verdadeiro troca-troca de universidades, oferecendo cursos nos diferentes estados. Faculdades de São Paulo, de Roraima, do interior de Sergipe, do interior de Mato Grosso etc. concedendo diplomas a estudantes jovens e adultos no Piauí. Não sei se faculdades do Piauí andam concedendo diplomas por aí. Sei que algumas franquias do Piauí atuam no Maranhão. Reconheço que as universidades públicas e universidades particulares têm contribuído para a formação de muitas categorias profissionais, inclusive nossa UESPI. Evidentemente, precisa melhorar a qualidade em quase todas as universidades e áreas. Mas, ando preocupa também há algum tempo com o insulamento das universidades. Nas pesquisas e nos debates predomina o intelectualismo: os temas não têm muito a ver com problemas mais abrangentes da sociedade. Há um foco na publicação de artigos em revistas, para impulsionar as carreiras acadêmicas, que preocupação com a repercussão; há muita especialização no estudo da obra de autores, alguns importantes é verdade, mas sem o uso de suas teorizações para interpretar a nossa realidade. Está precisando “pacificar” a UESPI. O atual governo tem dado dinamismo a algumas políticas públicas, inclusive do ensino médio e profissional. Mas a educação superior na UESPI ainda não ganhou novo ritmo. Os governos e a universidade precisam entender o que é autonomia de uma universidade pública. É dinheiro de orçamento; tem que ter interação Universidade-Governo em torno de uma política de estado (não de governo). Há muito tempo se fala em vocação regional dos diversos campi da UESPI; não percebo isso acontecendo, ou melhor, seu impacto. Temos mais mestres e doutores. Gostaria de sentir sua presença na esfera pública. Só o ensino médio não transforma uma sociedade, sem um suporte da educação superior, sobretudo se a escolha é atingir o nível tecnológico da era da telemática.
9 HR – A conjuntura política brasileira mais recente está caracterizada por uma polarização extremada entre grupos de direita e de esquerda. Esse contexto reflete a conjuntura internacional, inclusive a da Latino-americana? Como o Senhor Analisa essa situação?
AJM - Precisamos entender que estamos vivendo um tempo de mudança histórica, talvez até civilizatória. A revolução da telemática (computador + satélite) e a possibilidade de um colapso ecológico (clima, poluição, esgotamento de recursos) vieram para ficar. O neoliberalismo não é a simples vitória de economistas conservadores (Hayek, por exemplo) que o defendem desde os anos 1940 contra a social-democracia e o keynesianismo; e não depende do colapso do comunismo soviético. É o efeito da automação que reduz o poder dos assalariados e oferece possibilidade às empresas de atuarem num mercado de bens e financeiro global. Com a redução da legitimidade do estado-nação (nacionalismo e patriotismo) e fim da predominância do conflito de classes, há uma explosão de diversas identidades que dão algum sentido à vida das pessoas e geram novos tipos de solidariedade. É um fenômeno histórico. Precisamos saber dar um rumo civilizatório aos esses impactos A crise da esquerda nasce daí. A nova direita explora bastante a questão das identidades. Não se pode defender a diferença como um valor em si, toda diferença tem que passar pela mediação da dignidade da pessoa humana. Sobretudo, quando a questão ecológica exige solidariedade planetária. Diversidade precisa de tolerância e de multiculturalismo. O pós-modernismo e sintoma não é solução. A modernidade não esgotou suas potencialidades históricas. Gosto muito de uma frase do filósofo Pascal: “Só há duas espécies de loucura: a que exclui a Razão; e a que reduz tudo a ela”. A razão é uma faculdade humana capaz de crítica e de autocrítica. Não é difícil perceber a irracionalidade da extremadireita. Mais difícil é perceber a irracionalidade de um sistema que não deixa espaço para a solidariedade. O perigo é que os comportamentos irracionais têm efeitos práticos.
10 HR – Poderia fazer um balanço da sua trajetória, destacando aspectos positivos e aqueles que ainda se encontram como projeto?
AJM - As pessoas no Brasil e no mundo estão vivendo mais; a expectativa de vida é de mais de 70 anos. Estou com 74; tenho a sensação que ainda vou atravessar duas décadas. É normal que esteja havendo uma mudança cultural e psicológica. A sociedade aceita comportamentos mais livres para os idosos, apesar de ainda haver preconceitos. Acho a palavra “etarismo” horrível. Por outro lado, as pessoas idosas – e é meu caso - estão se sentindo mais joviais, dispostas a continuarem ativas. Gostaria de ter equilibrado mais minha atividade intelectual e política. Mas, no Brasil, a tarefa de apoiar o fortalecimento da sociedade civil exigia muito; e o engajamento na construção de um partido popular de massas também exige muito. Ando motivado para pesquisar a escrever. Não só para resgatar o passado, mas para refletir sobre o futuro. Avançamos no Piauí e no Brasil. Mas eu esperava ver mais. Sempre achei que a caminhada seria de várias gerações. Acho que nossa geração não entregou o que eu sonhava. A realidade está cada vez mais complexa; está difícil perceber tendências positivas a explorar; está mais difícil articular-se com as pessoas em torno de valores comuns. Às vezes, vem a sensação de retrocesso. Tenho muito cuidado para não avaliar cada situação com a “cabeça de velho”. Mas, pode haver retrocessos na história; é um aprendizado doloroso. Dá para entender melhor o que Kant chamava “imperativo categórico”: é uma opção ética pessoal para orientar sua vida, independente da certeza de chegar lá. Na vida humana, os fatos “têm sido assim”, “estão sendo assim”, mas “não são necessariamente assim”. A história dos homens e mulheres tem sempre os horizontes abertos
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