Meio Ambiente

Civilização e cursos d'água: em busca da convivência perdida

O processo de ocupação, convivência e modificação dos cursos d'água ao longo da história humana é um tema vasto


Reprodução/TV Clube Civilização e cursos d'água: em busca da convivência perdida
Civilização e cursos d’água

Por Nilson Coelho
Arquiteto e MSc. Planejamento Urbano, Sustentabilidade e Inovação

A história da urbanização de todas as cidades passa pela modificação dos cursos  naturais de água que foram criados pela Natureza durante muitos anos e sempre acomodando-se à topografia existente. Uma histórias de convivência, de harmonia e de respeito mútuo até a chegada do processo civilizatório e a supremacia do homem sobre o ambiente natural sem o devido respeito aos condicionantes ambientais.

Urge analisar o processo de ocupação, convivência e modificação dos cursos d’água pelo processo civilizatório desde a Mesopotâmia (sumérios, babilônios etc) até os dias atuais. Como as civilizações ocuparam e modificaram os cursos d’água (rios, lagos, pântanos etc.) e de que maneira essas intervenções no ambiente natural retornaram como desafios a serem enfrentados pelas cidades no seu processo de urbanização desordenado e sem planejamento. Faz-se necessário abordar também como o consumo desenfreado dos recursos naturais e o processo de industrialização contribuíram para o aquecimento do planeta e para a modificação do regime natural de chuvas trazendo como consequências grandes enchentes e alagamentos bem como a criação de grandes ilhas de calor no espaço urbano.

O processo de ocupação, convivência e modificação dos cursos d’água ao longo da história humana é um tema vasto e multifacetado que abrange a relação entre civilizações e seu ambiente natural, desde a Mesopotâmia até os dias atuais, destacando as intervenções humanas e suas consequências.

A Mesopotâmia, situada entre os rios Tigre e Eufrates, foi uma das primeiras regiões a desenvolver sociedades complexas, como os sumérios e babilônios. A agricultura irrigada foi fundamental para seu desenvolvimento, levando à construção de canais e diques que controlavam o fluxo da água. As civilizações mesopotâmicas implementaram sistemas de irrigação criando canais para aumentar a produtividade agrícola, mas essas intervenções também resultaram em assoreamento e salinização do solo, dificultando a agricultura a longo prazo.

O rio Nilo era vital para a civilização egípcia, que dependia de suas inundações anuais para a fertilização das terras. Os egípcios desenvolveram técnicas de irrigação e construíram barragens e canais para controlar o fluxo de água.

Embora essas intervenções tenham beneficiado a agricultura, também levaram a um aumento da dependência de um único recurso hídrico, tornando a civilização vulnerável a mudanças climáticas.

Os romanos, por exemplo, construíram aquedutos para transportar água para as cidades, demonstrando um entendimento avançado de engenharia hidráulica. No entanto, a urbanização desordenada, sem planejamento, levou a problemas de drenagem e inundações em áreas urbanas.

Durante a Idade Média, as cidades cresceram ao redor de rios, mas a poluição e o desmatamento causaram degradação dos cursos d'água, afetando a qualidade da água e a saúde pública.

A Revolução Industrial (século XVIII e XIX) trouxe um aumento exponencial na urbanização e na exploração dos recursos naturais. Rios foram utilizados para transporte e como fonte de energia, mas também se tornaram receptáculos de poluição industrial e urbana.  

O crescimento desordenado das cidades, aliado à impermeabilização do solo (asfalto e concreto), bem como a ocupação dos cursos d’água naturais dificultou o escoamento e a absorção da água das chuvas, resultando em enchentes e alagamentos frequentes.

O surgimento e a expansão das cidades ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, tiveram um impacto significativo nos cursos d'água, resultando em intervenções que variaram desde a construção de diques e canais até o desvio e a poluição de rios.

No século XIX, Londres, Inglaterra, passou por grandes transformações devido ao crescimento populacional e à Revolução Industrial. O rio Tâmisa foi profundamente alterado, com a construção de diques e a dragagem do leito para facilitar a navegação e controlar as enchentes.

Para combater as inundações e melhorar a navegação, Chicago, no final do século XIX, reverteu o fluxo do rio Chicago para desviar as águas para o Lago Michigan. Isso envolveu a construção de canais e a alteração do leito do rio.

No século XX, Tóquio, Japão após uma série de inundações devastadoras, implementou um grande projeto de controle de enchentes nas décadas de 1950 e 1960, que incluiu a construção de canais de desvio e a criação de reservatórios subterrâneos.

No início do século XX, para controlar as enchentes e gerenciar a água, o rio Los Angeles foi canalizado em um leito de concreto, alterando drasticamente seu curso natural.

No século XXI, a cidade de São Paulo promoveu uma série intervenções em seus cursos d’água, especialmente com a construção de córregos canalizados e o assoreamento de rios, como o Tietê e o Pinheiros, ao longo do século XX e XXI. Copenhague, Dinamarca, em resposta a inundações severas e ao aumento do nível do mar, implementou projetos de infraestrutura verde, como a criação de parques que funcionam como bacias de retenção para águas pluviais e a reabilitação de cursos d'água urbanos, adotando uma solução que ficou conhecida como cidades-esponjas (sponge-city).

A ideia de cidade-esponja começou a ganhar destaque no final da década de 2000, em resposta a problemas crescentes de urbanização rápida, poluição e gestão inadequada de águas pluviais em várias cidades do mundo.

A técnica de cidade-esponja foi formalmente introduzida na China em 2013, quando o governo começou a implementar um plano nacional para transformar várias cidades em “cidades-esponja”. O objetivo era melhorar a capacidade de absorção e gestão das águas pluviais. A cidade-esponja é um conceito que visa reimaginar as áreas urbanas como sistemas que podem "absorver" água da chuva, retendo-a e liberando-a lentamente, em vez de permitir que a água escoe rapidamente para os sistemas de drenagem, o que pode causar inundações.

Cidades como Xangai, Shenzhen e Pequim foram pioneiras nessa abordagem, implementando infraestrutura verde, como jardins de chuva, pavimentos permeáveis, e áreas de retenção de água.

A técnica de cidade-esponja representa uma abordagem inovadora e sustentável para a gestão urbana da água, abordando os desafios das mudanças climáticas e da urbanização descontrolada.

A gestão de águas pluviais tem melhorado a capacidade das cidades de lidar com chuvas intensas, reduzindo o risco de enchentes. Essas iniciativas, com foco em soluções baseadas na natureza (SbN), visam não apenas controlar as inundações, mas também restaurar ecossistemas e melhorar a qualidade da água.

Podemos observar que a urbanização ao longo dos séculos trouxe desafios significativos para os cursos d'água, resultando em uma série de intervenções que muitas vezes tiveram consequências imprevistas e graves.  À medida que as cidades continuam a crescer, a necessidade de um planejamento urbano sustentável que respeite os ecossistemas aquáticos e busque soluções baseadas na natureza (SbN) para os problemas de drenagem e poluição é mais crucial do que nunca.

O consumo desenfreado de recursos naturais e a industrialização contribuíram significativamente para o aquecimento global. Emissões de gases de efeito estufa, desmatamento e poluição dos cursos d’água têm impactos diretos no clima e no regime de chuvas. O aquecimento global alterou padrões climáticos, levando a secas severas em algumas regiões e enchentes em outras, exacerbando a vulnerabilidade das cidades. E a urbanização não planejada resultou na criação de ilhas de calor urbanas, onde as temperaturas são significativamente mais altas do que nas áreas rurais circundantes. Isso ocorre devido à absorção e retenção de calor por superfícies impermeáveis, que também contribuem para a escassez de áreas verdes e a degradação do meio ambiente.

A relação, portanto, entre civilizações e cursos d'água é uma história de adaptação, exploração e, muitas vezes, de ocupação insustentável. As intervenções humanas, embora tenham trazido benefícios a curto prazo, frequentemente resultaram em desafios ambientais significativos que as cidades enfrentam hoje.

A necessidade de um planejamento urbano sustentável, que respeite os ciclos naturais e promova a conservação dos recursos hídricos, é mais crucial do que nunca para enfrentarmos as consequências do passado e garantir um futuro mais equilibrado. Não é justo acusar as chuvas. Elas exercem o seu papel natural. Cumpre-se, aos poderes públicos e ao grande capital, legislar, planejar e obedecer normas e padrões, tornando as cidades mais democráticas-um lugar para todos-responsivas, sustentáveis e resilientes.

Como Proust o fez sobre a sociedade francesa, precisamos explorar temas como memória, tempo, respeito e significado na convivência entre sociedade e natureza.

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