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A mulher que ouvia o que a Caatinga sussurrava

De Juazeiro do Norte a Cajazeiras, e muito além, Luzia ensinou que cada planta carrega um segredo e uma esperança


Reprodução/cebi.org.br A mulher que ouvia o que a Caatinga sussurrava
A mulher que ouvia o que a Caatinga sussurrava

Por Aquiles Lins, colunista no Brasil 247

Luzia rezadeira veio ao mundo numa noite fria de março de 1944, bem no sopé da serra do Horto. Filha de Severino, um agricultor de fala mansa, e Otília, parteira de mãos firmes. Juazeiro do Norte ainda era mais barro que asfalto, mais promessa que cidade. Foi ali que a menina, de pés descalços e olhos atentos, aprendeu a ouvir. Não era ouvir de escutar, mas de perceber: o quebranto no choro de uma criança, o aviso do mato quando vinha mudança de tempo, o sussurro das folhas quando alguém estava prestes a adoecer.

Desde cedo, Luzia se encantou com os poderes que moram dentro das plantas. Não sabia ler as palavras dos livros, mas compreendia os matos como quem decifra segredo. Era o alecrim que acalmava, a arruda que espantava o mau-olhado, a aroeira que sarava as dores de dentro.

A fé no Padre Cícero Romão Batista ela carregava desde pequena. Quando nasceu, o padre havia morrido há apenas dez anos. Aos 25, viu a imponente estátua do Padim ser inaugurada, bem acima de sua terra. Dali, ele abençoava todo o sertão do Cariri cearense — e o mundo inteiro se beneficiava. Já o dom para a cura pelas plantas, herdado talvez de Otília ou de alguma bisavó esquecida nas dobras do tempo, Luzia aceitava sem alarde — como quem cumpre um dever passado por Deus.

Casou-se jovem com Zé Raimundo, um rapaz de Cajazeiras que conheceu segurando um candeeiro durante a Romaria de Nossa Senhora das Candeias. Ele tinha mãos grandes e um olhar que ria fácil. Foram morar na terra dele, entre o Rio do Peixe e as serras que assombram o sertão. Tiveram uma filha, Tereza, mas a alegria durou pouco. Uma febre pegajosa, daquelas que começam nas juntas e acabam nos pulmões, levou Zé Raimundo de um jeito rápido demais. Luzia tentou de tudo: benzimento, chá de quixabeira, promessa acesa. Nada adiantou. Nem Padim salvou Zé Raimundo. Ao contrário, o quis para junto dele, gostava de pensar Luzia.

Viúva nova, criou Tereza sozinha, com a ajuda de um roçado pequeno e das mãos que curavam mais que plantavam. Tornou-se respeitada na vila, não por autoridade, mas por presença. Todo mundo sabia: quem sofria de espinhela caída, dor de cabeça sem causa ou tristeza escondida ia até a casa de Luzia — uma casinha simples, com pés de andu e sombra de mangueira — e saía de lá melhorado. Nem sempre curado, mas mais forte.

Mas havia algo que Luzia nunca deixava de repetir para as mulheres mais jovens, crianças e curiosos: “As plantas falam. É só saber escutar. Elas avisam, ensinam e até sonham.” Seu propósito maior era preservar. Não apenas a mata, que fornece os remédios para todos os males, mas o saber que vive nos quintais, que brota nas latas antigas de tinta, nas beiras de estrada. Sabia que manter as tradições e os conhecimentos das matas e dos ritos religiosos era uma forma da ancestralidade atravessar o tempo.

Luzia presenciava que, com a chegada do progresso, muita planta sumia, muita reza virava piada, e muito conhecimento escorria pelo ralo da medicina “dos homens”. Enquanto isso, ela ensinava Tereza e, depois, o neto Cícero — cujo nome foi uma homenagem ao santo de Juazeiro: “Cada raiz carrega uma memória. Cada casca e cada folha têm o seu poder.”

O tempo passou, Cícero cresceu e o destino o levou para os lados de Cabaceiras. Mas ele com frequência voltava para Cajazeiras para visitar sua avó Luzia. Numa dessas idas, num fim de tarde lento, de céu aberto, cheiro de terra molhada e a vista da caatinga toda verdinha, Cícero sentou-se num banco encostado ao pé de angico. Sua avó tinha a pele fina, frágil e translúcida. As veias das mãos muito visíveis e os passos arrastados. Mexia em um maço de folhas secas sobre uma pequena mesa. Ao lado, em cima de uma cadeira, havia uma caixa, dessas de feira, coberta com um pano.

“Bença, vó.”  “Deus te abençoe, meu filho.”

O vento balançava as folhas do angico. Luzia largou o maço que tinha na mão, levantou o pano que cobria a caixa e pegou um pequeno caderno de capa dura, com páginas em branco. Entregou-o para Cícero. “Escreva neste caderno o que tu for aprendendo. Eu não aprendi a escrever, mas tu pode deixar o saber vivo daqui pra frente. Porque vai chegar o tempo que ninguém mais vai lembrar de perguntar às velhas. E o mato vai morrer sem testemunha.”

Cícero guardou o caderno como quem guarda segredo. Nas páginas, começou a anotar tudo o que a avó lhe dizia e o que ele mesmo descobria observando o mato: o chá da casca do marmeleiro que aliviava a tosse seca, a mistura de boldo com limão bravo que resolvia problemas no fígado, a infusão de flor de algodão com mel de jandaíra para cortar febre em criança. Aprendeu a identificar as folhas pelo cheiro, a ouvir o barulho do vento como aviso, e a confiar nos silêncios entre uma estação e outra. Com o tempo, aquele caderno virou mapa — de cura, de fé, e de lembrança. E foi ele que, anos depois, guiou seus passos no sonho de reflorestar a caatinga que um dia Luzia ensinou a amar.

Luzia rezadeira morreu dois anos depois de confiar a Cícero aquela importante missão. Tinha 81 anos e partiu serena, de causas naturais. Dez anos depois, quando o juazeiro de Cícero lançou sua primeira sombra sobre o curral, ele entendeu enfim o que a avó queria dizer. O mato que voltava era resposta. Era voz. Era aquele sussurro de folha que, um dia, ele aprendera a escutar. E ali, no meio da caatinga viva, Cícero ainda rezava baixinho. Como quem conversa com a avó Luzia ou com o próprio tempo.

(* Esta é uma história de ficção)

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