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Zema e a necropolítica: Vidas presas importam?

Presos de Minas Gerais contam com pouco ou nenhum suporte do Estado em meio à pandemia do coronavírus, que se espalha cada vez mais dentro do sistema

Foto: Agência BrasilSistema Prisional
Sistema Prisional

Por Lelê Teles, da Revista Fórum

Imagens, em plena pandemia, da ação desumana de despejo contra os trabalhadores rurais do Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, chocaram o Brasil.

Policiais derrubaram escola, destruíram casas e apavoraram os assentados com uma presença ostensiva e violenta da tropa de choque, ronda aérea de helicóptero e fogo.

Mirando as vidas pretas, pardas e pobres, o governo de Romeu Zema segue provocando indignação e pavor na população mineira.

A denúncia agora vem do sistema prisional.

Transferências

O governo autorizou a transferência de presos durante a pandemia, ignorando recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Existe um documento específico da órgão tratando sobre o assunto.

Foi o que levou o Grupo de Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade, no dia 4 de junho, a fazer um protesto, em frente à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, denunciando a falta de testes de presos, a remoção de apenados e, ainda, tortura.

Veja vídeo:

A transferência de apenados, denunciou o Grupo, durante a pandemia do novo coronavírus, coloca em risco a vida de quem está preso, de quem os escolta e dos seus familiares.

O protesto contou, também, com o apoio da Frente Estadual de Minas Gerais pelo Desencarceramento. Os coletivos dizem que pessoas de Belo Horizonte, Contagem e Betim, região metropolitana da cidade, foram mandadas para Formiga, na Região Centro-Oeste do estado, longe dos seus familiares.

Maria Teresa dos Santos, que é coordenadora da agenda estadual pelo desencarceramento e presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade, denunciou ao jornal Estado de Minas: “Nós estamos em plena pandemia e, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o isolamento, o sistema prisional tem movimentado presos todos os dias.”

Dados colhidos pela Comissão de Assuntos Carcerários da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), bem no início da pandemia, já mostravam um aumento de 60% nas transferências.

“Essas transferências”, conta a advogada Carolina Barreto, “sequer foram publicadas no Diário Oficial. Só meses depois e depois de muita pressão, os nomes dos transferidos começaram a aparecer no DO”, relata.

Para piorar, as famílias dessas pessoas privadas de liberdade só tomaram conhecimento das transferências porque as entregas enviadas via Correios para o sistema prisional, com kits de higiene, começaram a voltar para os seus remetentes.

Vidas presas importam

A Fórum conversou com Carolina Barreto Lemos, pesquisadora pela Universidade de Brasília (UnB), advogada popular e ativista antiprisional que atua junto à Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais e à Agenda Nacional pelo Desencarceramento.

Ela falou sobre a falta de clareza nas informações relativas à transferência de presos e, também, sobre contágios pelo novo coronavírus no sistema prisional.

“O Depen (Departamento Penitenciário Nacional) tem dado informações erradas, falsas mesmo, em seus comunicados aos familiares dos presos, inclusive temos provas documentais de que eles têm dado informações que não se confirmam com a realidade. Estamos trabalhando com informações informais, que nos chegam por meio de advogados, dos egressos que saem”, afirma Carolina.

De acordo com a advogada, o Depen não tem divulgado dados oficiais, não há publicidade dos dados e não existe um canal oficial relatando quantos testes foram realizados, quantos casos foram identificados, quantos sintomáticos e assintomáticos, nada.

Segunda ela, só “depois das nossas manifestações, o Depen criou um chat para falar com os familiares, mas só o Depen fala. E eles soltam alguns comunicados em muitos grupos, o que dificulta até a gente acompanhar, porque esses dados vêm tudo parcelado e disperso, não há uma centralização destas informações num site público”.

Mesmo com o enorme crescimento do contágio, a última informação oficial que se tem é do Boletim Especial da Secretaria do Estado de Saúde, que só incluiu o sistema prisional depois de muita pressão de familiares e coletivos. Mesmo assim, a última atualização, englobando o sistema prisional, saiu no dia 21 de julho.

“Esse boletim”, explica Carolina Barreto, “fala em 44 surtos no sistema prisional, considera-se surto quando há registro de mais de três casos; porém, não há clareza nesses números, porque não se divulga o número de testes”.

Morte

Na manhã do dia 4 de julho, ouviu-se grito de presos vindo das celas do presídio de Manhumirim, na região da Zona da Mata (a 303 km de Belo Horizonte). Foi encontrado desmaiado em uma das celas o preso Lucas Morais de Trindade, de 28 anos.

O jovem havia sido preso em novembro de 2018, ao ser flagrado vendendo R$ 10 de maconha. Pelo crime foi condenado a 5 anos de 10 meses de reclusão.  

Lucas havia sido transferido de Ipatinga para Manhumirim, “ele já com sintomas”, relata a advogada Carolina Barreto. “Isso a gente sabe porque temos documentos que comprovam, e ele não ficou isolado, não houve quarentena, nada. Chegou e foi conviver direto com os outros presos, mesmo apesentando sintomas. Aí, pouquíssimos dias depois que ele chegou e que começou a passar mal, é que o levaram para o hospital, fizeram teste, identificaram que ele de fato estava com Covid, aí o internaram no hospital”.

Levado Hospital Padre Júlio Maria, Lucas morreu no mesmo dia. Em seguida, constatou-se que 75% dos presos e 13 trabalhadores foram contaminados,

Carolina esclarece o caso: “160 dos 240 testaram positivo, mesmo assim, os parentes só tomaram consciência do contágio massivo por fontes não oficiais. Então foram para a porta do presídio protestar e, só aí, foi feita a testagem em todos os presos. Testagem que não foi feita pelo Estado de Minas, mas pela secretaria municipal de Manhumirim”, conta.

Então, soube-se, que entre esses 160 infectados, 60% já estavam sintomáticos no momento da testagem.

Carolina diz, também, que faltam médicos nas unidades prisionais, e que foram os municípios vizinhos que enviaram os profissionais à unidade prisional, inclusive com o fornecimento da testagem.

Tortura

Outra coisa muito séria. As visitas exercem um papel importante. É através delas que se que fiscaliza a saúde dos parentes presos, se há sinais de tortura. As visitas são o veículo que traz as denúncias para fora das grades e dos muros. Com a interrupção das visitas, a tortura passou a correr solta dentro das unidades. Os próprios internos fizeram denúncias, enviando vídeos de dentro da prisão.

“Constantemente recebemos denúncias de agressões físicas, uso de spray de pimenta nas celas e outros tipos de tortura, práticas essas que ferem os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana”, denuncia Maria Teresa dos Santos, presidente da Associação dos Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade.

Há denúncias, também, de racionamento de água, em plena pandemia. Sem visitas, os presos ficam desassistidos. Há a permissão para o envio de produtos de saúde por Sedex, o que é bastante custoso para muitas famílias que denunciam, ainda, que muitas vezes os kits voltam com o Sedex, e muitos que não voltam não chegam às mãos dos presos.

Segundo dados da plataforma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só 40% dos presos em Minas Gerais tem uma sentença transitada em julgado. Junta-se a isso mais 40% que foram julgados e condenados. O restante está preso com condenação em primeira instancia, mas que ainda aguardam recurso. Portanto, também são presos provisórios.

A advogada Carolina desabafa: “O Conselho de Justiça (CNJ-MG) tem uma política sistemática de negar os HCs que são impetrados baseados na recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), eu mesma protocolei diversos HCs e todos foram negados, as explicações para as negativas são completamente absurdas, demostram uma falta de conhecimento dos desembargadores, uma política obscurantista, negacionista, até. Tem decisão, inclusive, dizendo que ficar preso é ficar isolado”.

A luta continua. Neste sábado (22), às 14 horas, acontecerá a live Minas Contra a Tortura, ato virtual realizado pela Frente pelo Desencarceramento de Minas Gerais em conjunto com a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação Liberdade de MG.

Sejusp

Em nota enviada ao jornal Estado de Minas, a Secretaria de Estado, Justiça e Segurança Pública de MG (Sejusp) informa que hoje são nove detentos no sistema, mas já foram 11– dois receberam alvará de soltura e não estão mais sob a custódia do sistema prisional mineiro. “Com relação às demais unidades mencionadas pelo Fábio Piló, não procede a informação de eventuais novos detentos testados positivo para a COVID- 19, além daqueles que já informamos”, afirma.

Sobre as transferências, a pasta esclarece que o aumento se deu em decorrência da criação das 30 unidades prisionais que passaram a funcionar como porta de entrada do sistema prisional mineiro.

“Essa foi uma das principais frentes de atuação da Sejusp, por meio do Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG), para combater a disseminação da COVID-19 no ambiente prisional – iniciativa elogiada, inclusive, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública”, diz a nota.

“Atualmente, cerca de 98% das transferências realizadas no sistema prisional mineiro são para cumprir esse protocolo: ou seja, transferência do presídio porta de entrada para outro presídio ou penitenciária, após completa certeza que, vindos do ambiente extramuro, não estão contaminados. Outras transferências que não são da porta de entrada, durante a pandemia, são excepcionalidade e levam em conta questões de segurança”, completa a pasta.

A Sejusp esclarece ainda que a maior parte das contaminações registradas se deu justamente em presos que estão nessas unidades porta de entrada, ou seja, presos que se contaminaram no ambiente extramuros. Nada tem a ver, segundo a pasta, com as transferências.

“Importante ressaltar que a Sejusp não só estabeleceu novos protocolos de admissão de presos, pautados em regras científicas de não circulação de pessoas de ambientes extramuros em ambientes prisionais, como está atuando totalmente em ressonância com todas as recomendações da área de saúde, adotando várias medidas como suspensão de visitas, alargamento da escala de trabalho, entre outras”, acrescenta.

“A saúde dos servidores e também dos custodiados é monitorada de perto pelo Departamento Penitenciário de Minas Gerais. O sistema prisional está produzindo máscaras para uso nas próprias unidades, para garantir a segurança de todos. Todos os servidores são obrigados a circular no interior das unidades de EPIs e, a eles, esse material é fornecido sistematicamente. Os presos também utilizam máscaras quando estão com algum sintoma suspeito ou quando pertencem a alas ou pavilhões onde outro detento foi testado positivo para a doença”, finaliza. 

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