Pensar Piauí

Teresina meu amor

"Lembro-me como se fosse hoje do dia em que cheguei à Teresina"

Por Acilino Madeira, Economista, Auditor Fiscal da Paraíba e Poeta*

Lembro-me como se fosse hoje do dia em que cheguei à Teresina. Era um começo de noite de domingo e as luzes de mercúrio da antiga Estrada Nova, hoje Avenida Barão de Gorguéia, fascinaram-me imenso. O “misto”, meio “horário” e meio caminhão parou bem devagarzinho depois do cemitério da Vermelha, outrora bairro periférico, ao lado de pés de figueiras enfileiradas espaçadamente comedidos.

Gente, muita gente aguardava seus parentes, amigos, conhecidos e aderentes que chegavam da Missão. Avistei meu pai que se achegava para bem perto do estribo daquele pau-de-arara de luxo. Minha mãe exausta da viagem dava-lhe a mão e um sorriso que significava muito para aqueles dois eternos namorados. A distância de três meses e quinze dias lhes separavam da última conversa repleta de planos e projetos de educação da prole na capital do Estado: um menino macho e duas meninas fêmeas.

À época desta conversa, e que para mim havia se passado há séculos carcomidos de saudades, ouvia-a entre a curiosidade e a dormência da véspera do sono pesado dos meninos do mato. Desmaiei no pano quadriculado em listas de vermelho, amarelo e azul da cadeira preguiçosa da sala de espera de nossa casinha geminada da Rua do Papouco, tão reta e tristonha na geometria da cidade.

Por entre pensamentos e curiosidades infantis, aguardava o dia da partida. Todos os dias era uma despedida. Adeus engenhos de minha infância e das coités de garapa azedinha pelo travo agreste dos maracujás-de-porco. Adeus ao propagandista de remédios e banhas medicinais da feira de domingo. Adeus ao vento Geral que descia da serra para perambular pelos tabuleiros ainda viçosos nas manhãs de abril. Adeus igrejinha da Missão dos Jesuítas, reconstruída com esmero pelo meu avô paterno. Adeus às covas centenárias do cemitério dos índios das tribos misturadas. Adeus meu mundinho encantado das rodas de São Gonçalo, das rezas e das inselências, adeus aos adeuses cotidianos que não se acabavam mais...

Era domingo. Naquele dia, de manhã duradoura e intensa, pus-me na proa da ansiedade dos sem pecados, na inocência dos que rumam para o futuro sem medo e ressentimento. Imaginava Teresina sem nunca lá ter pisado.  Não podia ser pequena, com certeza teria muitos carros e de cores e marcas variadas. Meu pai lá me aguardaria e mais uma vez iria cantarolar, para mim, as mesmas músicas que eu insistiria em dizer que eram invenções dele, não existiam de fato. Minha mãe mudaria o seu ateliê para a capital, outras senhoras teriam suas formas por ela medidas pela fita métrica de lados amarelo-claro e branco-gelo.

Como num salto de tempo indefinido, já havia descido do “misto” e caminhava de rua abaixo na curiosidade de saber como seria a minha nova morada. Mas, era noite e o cansaço da viagem me dominou. Acordei na rede armada na sala que deveria ser a de jantar precisamente, o velho petisqueiro lá estava sempre na guarda das lembrancinhas familiares, das louças finas de bordados meticulosos. Lá estava a mesma mesa de seis lugares, para uma família de cinco pessoas, encostada na parede ainda lisa, sem quadros e retratos amarelecidos de familiares distantes e já com tanto assento em minha memória. De um salto só, peguei o corredor que esbarrava na porta de entrada. Matei a curiosidade. Era uma casinha de fachada timidamente azul com uma algaroba na calçada baixinha rente à rua descalça que morria logo perto, na porteira da Quinta de Seu Joca do Vale, irmanadas a outras tantas quintas lambidas pelas águas barrentas do Parnaíba.

Naquela segunda-feira de julho, o céu estava azul e sem nuvens e sem formas e sem nada. Sem o cheiro dos currais, dos engenhos e das canas-de-açúcar pendoadas me despedi de mais um mundo que a vida não mais traria, às vezes só em lembranças insistentemente escassas. 

*OBS: Originalmente publicado aqui mesmo no pensarpiaui em 31/07/2020

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