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Sobre O Mecanismo, Antonia Pellegrino

Sobre O Mecanismo, Antonia Pellegrino

Roteirista há 14 anos, Antonia Pellegrino escreveu três filmes que somam mais de 5 milhões de espectadores, colaborou em cinco novelas e sete seriados. É escritora, produtora do documentário "Primavera das Mulheres" e editora do blog #AgoraÉQueSãoElas.
Sobre O Mecanismo
Não escrevo sobre a série O Mecanismo para defender governo algum, mas porque há problemas gravíssimos no novo lançamento de José Padilha e vou me deter apenas em alguns pontos mais estruturais.
O primeiro dos inúmeros problemas da série O Mecanismo está na cartela que abre os episódios, onde lê-se: baseado livremente em fatos reais. Sabemos que para a realidade fazer sentido fílmico é preciso editá-la. Mas não distorcê-la – e sobre isso não estou contestando o fato de ter havido muita corrupção nos governos petistas. Para abrir este mecanismo, seria mais honesto se a cartela dissesse: baseado em delírios toscos, alucinações ingênuas e arrogância elitista. Como dizia Wally Salomão: “nossa memória é uma ilha de edição”.
A narrativa é inteiramente montada para comprovar uma tese da cabeça do criador da série, o diretor José Padilha. A tese é mais velha que vovó mocinha, mas precisa de 7 episódios para ser desenhada – o que acontece quando o personagem principal tem uma epifania com um bueiro. A política é um câncer que deve ser combatido. Uma doença que devora a todos: políticos de todos os campos ideológicos, agentes públicos, grandes empresários. Ninguém presta. E a solução para a política está fora dela. Na polícia federal, no ministério público e num ex-policial, um outsider bipolar disposto a tudo para quebrar a engrenagem.
O personagem Rufo, o outsider do mecanismo, é aquele que, por ter a coragem de enfrentar o mecanismo, pode ser meio louco e usar qualquer método para combatê-lo. Inclusive a violência, a intimidação, o micro-terrorismo. Se for pra combater o mecanismo, vale – e nada mais simbólico que combater o mecanismo usando a violência. Depois de oito episódios que me causaram náusea, me pergunto: o que mais vale, além da força policial, para combater o mecanismo? Uma ditadura militar? Um outsider alucinado, com porte de arma, que finge ser de fora da política e promete colocar a casa em ordem no grito?
Padilha se inspira livremente em fatos reais para narrar a novela política que o Brasil inteiro acompanha há anos e se dá a liberdade de criar um personagem central para a trama que não existe. Se permite colocar a frase que explica e legitima o impeachment na boca do ex-presidente Lula. Porque pra Padilha é tudo farinha do mesmo saco, estão todos presos no mecanismo, então não interessa quem disse o que. Interessa mostrar como é o mecanismo.
No mecanismo dele, o escândalo do Banestado acontece no governo do PT. E a investigação não vai adiante porque o MP comete “um erro” – quando na verdade o governo FHC pagou por uma operação abafa. Mas nada disso importa. “É livremente inspirado em fatos reais”. E se precisar ser desonesto pra caber na tese do diretor, não tem problema. A desonestidade é sempre dos outros. Não do diretor. Ele não está roubando. Ele está fazendo cinema como um verdadeiro herói, alguém que tem a coragem de filmar, revelar e, portanto, combater o mecanismo. Seus métodos, assim como os do Rufo, não importam. Mentir, distorcer, caluniar. Tá de boa porque a causa é nobre e maior: combater o mecanismo. Já vimos este filme na realidade e ele não acaba bem. Acaba em totalitarismo, seja de esquerda ou de direita.
O grande perigo da cabeça política de Padilha é que ele monta um time de craques, capazes de potencializar ao máximo sua tese ingênua, arrogante e perigosa. Mecanismo é tosco como visão de mundo, mas é muito bem feito. Entre elenco e membros da equipe estão amigos queridos, profissionais que admiro e respeito. Estão todos brilhando em suas funções. Sabemos que um papel incrível, como o do diretor da Petrobrasil ou do doleiro, por exemplo, não são simples de chegar às mãos. Sabemos que é difícil ser coerente e temos contas a pagar. Sabemos que a vaidade é um fato e o quão sedutor é trabalhar numa série da Netflix realizada por um time incrível. Mas me pergunto por que, neste momento do país, que exige máxima responsabilidade de todos, pois está colocada uma clara disputa entre barbárie e democracia, artistas deste calibre aceitam dedicar tempo, energia, talento e amor para realização de um panfleto fascista?
Se a eleição presidencial fosse hoje e Bolsonaro eleito, pela lógica da série, estaria tudo ótimo. O mecanismo poderia ser quebrado. Acho que José Padilha não entendeu o mecanismo.”
O crítico de cinema Pablo Vilhaça também falou sobre o assunto para Ricardo Rovai no canal da Fórum Revista. Ele, que inclusive cancelou a sua assinatura na Netflix por conta da série, indica outras plataformas que disponibilizam filmes mediante assinatura como a Mubi e a Amazon Prime. Confira o link:

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