Pensar Piauí

Pensei em escrever sobre o amor, mas falarei do dia em que o mundo parou

Um operário da vigilância sanitária anuncia: ‭Fique em casa, use máscara, lave as mãos

Foto: Itau CulturalMaciel Melo
Maciel Melo

Por Maciel Melo, cantor, no facebook

Não era dia de nada, era apenas um dia comum. Aos poucos, o vazio foi tomando conta das calçadas, o deserto se espalhando pelas ruas e o silêncio emudecendo a cidade. O ermo se agigantava e as pessoas, uma a uma, iam-se enfurnando, se entocando, enquanto a solidão medrava sob o olhar sombrio da morte, que tossia e espirrava sobre a humanidade.

Máscaras de pano foram surgindo, cobrindo rostos, escondendo risos, disfarçando os restos de um período tenebroso em que proibir era a palavra de ordem.

Semblantes tristes se escondiam por trás da dúvida de um futuro nebuloso, esmaecido pela podridão política que espalhava o mau cheiro da incompetência pública. O mundo estava enfermo. Nos leitos dos hospitais, a agonia pedia socorro enquanto a Ciência era ignorada por uns e ridicularizada por outros. Havia uns resistentes que acreditavam na luta de um povo e por ele eram capazes de morrer, se preciso fosse. Havia também aqueles que defendiam a ferro e fogo a cor de sua raça, a sua opção sexual, a sua música, a sua bandeira, a sua maneira de ver o mundo de uma forma igualitária sem perder a compostura, sem humilhar o pequeno e sem abaixar o pescoço para o grande. Não era um pesadelo; era real. A existência humana estava por uma peinha de nada, numa corda bamba, unindo o começo ao fim. Somos malabaristas nos trapézios da vida. Sem vara e sem rede de proteção, nos equilibrando num arame enferrujado, num circo sem lona, sem arquibancada, sem palhaço e sem alegria.

Mas ainda há tempo de levantar o mastro, hastear a bandeira, botar o bloco na rua e fazer rufarem os tambores da liberdade. Ainda há tempo de descortinar o véu negro da intolerância e cantar o Hino Nacional com a mão espalmada no peito, sentindo orgulho de sermos um povo decente. Ainda há tempo de recuperarmos a nossa autoestima e vermos nossos filhos, os filhos dos nossos filhos e os filhos dos filhos dos nossos filhos de sorriso aberto, sem máscaras, sem véu, sem mordaça, e sem medo de serem felizes.

Um muro invisível ergueu-se à minha frente e, aos poucos, foi se tornando um quadrilátero, me enclausurando entre as paredes, de um puxadinho cedido por um amigo em um condomínio de casas simples e sensatas, para me manter no isolamento determinado pela Organização Mundial de Saúde.

Um operário da vigilância sanitária anuncia: ‭Fique em casa, use máscara, lave as mãos, ‬mantenha o distanciamento físico; o álcool setenta é imprescindível para a higienização pessoal...‭ ‬

É um vírus mortal. Apareceu de repente, encarcerando toda a humanidade, deixando o planeta em sinal de alerta.

Sigo todos os protocolos determinados pelas autoridades sanitárias. O medo, aos poucos, vai me consumindo enquanto a solidão se agiganta a cada dia que passa.

As palavras engasgam na garganta, e como um rio correndo de volta para a nascente, me vejo nadando contra a correnteza em busca de um passado feliz que não me sai da lembrança.

Lembranças de um tempo em que o verde reluzente cintilava e, sobre as folhas, gotas de orvalho, que aos meus olhos pareciam pedrinhas de brilhantes líquidas, transformavam minha infância num oceano límpido e transparente, onde os peixes eram vistos a olho nu. Mergulho fundo, e a solidão do isolamento obrigatório transforma em riachos minhas palavras, jorrando tinta pelo bico da caneta, transbordando as margens da folha de papel pautado, escorrendo pelas entrelinhas a cor vermelha do sangue que desce dos morros das periferias e coagula nas calçadas, enquanto um rei mal coroado cospe suas palavras toscas e escarra no chão da Pátria o escárnio de sua tirania. O futuro a Deus pertence. Medra o medo de pensar que posso não “chegar lá”, pois a cada minuto tenho que falar pra alguém: “Meus sentimentos, meus pêsames, que Deus o tenha”. Em meio a tudo isso, resolvi escrever um livro: “A MARCA DA CICATRIZ”.

Não sei como explicá-lo, mas sei que senti cada vírgula, cada ponto, cada parágrafo, cada frase, como se estivesse em uma prova de vestibular e o professor, com medo de ser esbofeteado pela ignorância, tivesse deixado as questões sobre as carteiras da sala de aula, ausentando-se para que a consciência de cada um resolvesse os problemas de uma nação que perdeu o tino e desembestou ladeira abaixo num abismo de dúvidas insensatas.

Em um determinado momento, o ócio quase me ‭con‬venceu de que era chegada a hora do fim. Caí numa página em branco e por uma noite inteira definhei em meus pensamentos, até ser ressuscitado pela poesia de um poeta chamado Augusto dos Anjos. Embora sendo ele o poeta das sombras, foi lendo sua poesia sepulcral que encontrei um atalho e renasci das cinzas. Estava eu quase me debruçando sobre a loucura. Era como se as páginas do livro do apocalipse tivessem se soltado da encadernação e, feito pássaros em bando, voassem sem vida pelos céus do meu infinito interior.

Dormi sobre a mesa. O cansaço havia me dominado e acordei com a cabeça sobre uma página do seu livro, onde estava escrito este poema:

“Vandalismo”.

Meu coração tem catedrais imensas,

Templos de priscas e longínquas datas,

Onde um nume de amor, em serenatas,

Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas

Vertem lustrais irradiações intensas

Cintilações de lâmpadas suspensas

E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais

E nesses templos claros e risonhos…

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Pois bem, atarantado e ainda sonolento, me vejo entre os templários que figuram nesse poema descritivo, como se estivesse eu, perdido em pensamentos, divagando entre as palavras de Augusto dos Anjos, enquanto o mundo se escondia da morte assim como o diabo se escondia da cruz. Penso até que, talvez por estar mergulhado nos labirintos do lirismo de um dos Titãs da literatura mística, e por estar preso em uma gaiola invisível, feita com as talas da prepotência humana, tenha eu hibernado por sobre as folhas da imaginação desse poeta, enquanto sonhava, escalando o céu para destronar Júpiter, imaginando também ser um Titã.

Que sonho louco! Estava delirando. Em um quadro de anotações sobre a escrivaninha, acrescento mais um traço, marcando mais um dia de confinamento.

Me sinto preso, me sinto só, o carcereiro é um vírus cruel, voraz e avassalador. Na verdade eu já havia sido encarcerado bem antes dessa pandemia. Já não sentia mais aquela alegria de peregrinar pelas noites inebriantes dos bares do meu velho e tão amado Recife. Já não se ouviam mais aquelas canções arrepiantes, que nos levavam ao amanhecer dos sábados, às vezes esticando até o domingo. Achava bom quando perdurava na lembrança o cheiro do perfume dela, da pessoa amada, com quem dividia entre as espumas dos copos as agruras, os labores, o doce, e o amargo da vida.

Meus ídolos continuam os mesmos e esses mesmos já não fazem mais parte das playlists dos bares e botequins, os quais me fizeram “errante violeiro”, para uns e idolatrado por outros.

Não há ninguém à minha espera; meu corpo é uma cela que detém minha alma. Minhas costelas, feito grades de ferro, prendem meus suspiros e aprisionam meus sentimentos libertários.

Os livros pulam da estante, os copos saem da cristaleira, a garrafa de whisky é a minha única companheira desde o dia em que o homem da OMS apareceu na televisão.

Aproveito o meu silêncio para preencher esse espaço de ausência que se agiganta a cada notícia que leio, escrevendo, ou rabiscando em todo e qualquer pedaço de papel em branco que encontro à minha frente.

Por várias vezes me faltou assunto ou, melhor dizendo, assunto havia, eu só não achava a ponta do novelo que enlinhavava o nó cego que se formara no emaranhado político em torno dessa pandemia.

E os dias se vão, mais um ano se vai, outro ano ainda vem, e nada de novo acontece.

Pensei em escrever sobre o amor. Mas o amor virou cafonice e eu continuo aquele mesmo cara que ainda empunha um violão num banco de praça e fica espiando para a lua pra ver se São Jorge futuca com sua espada a displicência de alguma cabocla sestrosa, que ainda se emocione ao receber um buquê de flores.

O amor! Ah, o amor. O amor coletivo, o amor ao próximo, o amor puro, o amor sem a complacência do vil metal. Sem distinção de cor, de raça, de religião ou de ideologias panfletárias, causadoras das piores segregações.

Enfim, eu escrevo para me libertar, e não para ser querido. Eu escrevo para extrair o travor do fel que amarga o doce da voz daquela pessoa amada, que se equivocou e se deixou levar pela onda avassaladora que inundou o momento, encharcou de lama nosso sonho e sepultou a vida sem direito a flores, fósforos e velas.

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