Política

O que diria Lampião, ao ver Moro (e outros) de chapéu de couro?

Sérgio Moro foi ao Nordeste e usou chapéu que caracteriza a região

  • quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Foto: Montagem pensarpiauíLampião e políticos
Lampião e políticos

Virgulino Ferreira da Silva, alcunhado Lampião, o Rei do Cangaço, notabilizou-se como líder do mais temido grupo de cangaceiros do Nordeste, responsável por ações que causavam espanto e assombro generalizado e que fizeram sua fama ecoar internacionalmente. Os cangaceiros eram um misto de bandoleiros e insurgentes, tipicamente enquadrados no fenômeno do "banditismo social" — caracterizado pela formação de grupos marginalizados que se organizam para saquear e pilhar como uma reação aos problemas sociais, à anomia política e negligência do Estado. A ação dos cangaceiros contra coronéis, fazendeiros e líderes políticos que submetiam os sertanejos à exploração e a vários tipos de desmandos fez com que granjeassem prestígio junto à população carente. Lampião, sobretudo, encarnou o espírito de revolta e subversão dos oprimidos, sendo dessa forma elevado ao status de "herói folclórico" no imaginário nordestino.

O estereótipo de ferocidade comumente atribuído ao cangaceiro eclipsou o conhecimento sobre seus vastos dotes artísticos. Para além de seus talentos bélicos, Lampião foi um exímio artesão, poeta, compositor e até mesmo estilista. O Rei do Cangaço foi o inventor de um dos maiores símbolos da cultura nordestina — o chapéu meia-lua de couro, popularmente denominado "chapéu de cangaceiro". Lampião produziu o chapéu com a aba virada para cima, de modo a não tampar a visão periférica dos cangaceiros, evitando que fossem surpreendidos em emboscadas. A aba era enfeitada com símbolos artísticos e religiosos, enquanto que a testeira era decorada com amuletos, medalhões e grandes moedas de ouro. Já os anéis e joias pequenas costumavam ser carregados junto ao aprisilhamento do barbicacho (cordão que prende o chapéu ao queixo), onde também se fixava o lenço do pescoço, denominado jabiraca.

Durante o período em que passou com o bando, o fotógrafo Benjamin Abrahão Botto registrou algumas imagens de Lampião costurando em suas duas máquinas Singer. Lampião e sua esposa, Maria Bonita, eram responsáveis por desenhar os croquis dos trajes. Feito o projeto, o próprio Rei do Cangaço costurava a indumentária principal, ao passo que os chefes do bando eram incumbidos de produzir os acessórios, bordados e ornamentos. A habilidade de costurar era, aliás, um dos critérios para a escolha do alto escalão do cangaço. Os uniformes dos cangaceiros se destacavam por serem luxuosos e fabricados em tecidos de boa qualidade — sobretudo couro de gado e de corço. Eram coloridos, vistosos e ricamente adornados com temas florais, estrelas e até mesmo detalhes fabricados com prata e ouro. Além de estabelecer a unidade visual do bando e designar as diferentes patentes hierárquicas, os uniformes luxuosos visavam diferenciá-los dos demais cangaceiros e, sobretudo, despertar a admiração da população.

Como eram nômades, os cangaceiros costumavam carregar tudo que utilizavam no próprio uniforme, motivo pelo qual a indumentária chegava a pesar mais de 30 quilos. Trajavam camisas sociais encimadas por uma túnica feita com tecido de mescla azul ou brim caque. Entre a túnica e a camisa guardavam duas cobertas, uma ligeiramente acolchoada para se deitar e a outra mais fina para se cobrir. Eram dobradas na forma de uma faixa de 10 centímetros de largura e colocadas cruzadas sobre o peito. Sobre as cobertas, ficavam os bornais — bolsas onde eram guardados alimentos, bebidas, munições e miudezas em geral. Eram presos por um tira de couro colocada um pouco abaixo do peito. Na cintura, usavam a cartucheira, onde repousavam os punhais curtos e longos, a pistola e o revolver. Os cangaceiros tinham pelo menos três estilos diferentes de calça: longa (comprida e com bainha solta), coronha (curta, cobrindo metade da panturrilha) e culote (similares às calças militares). Usavam ainda uma grossa perneira de couro, para proteger as canelas dos espinhos da caatinga, e calçavam alpercatas com meias de lã. Ao longo de toda a indumentária, eram fixados amuletos, que visavam trazer sorte e proteção: Estrelas de Davi, Signo de Salomão, Cruz de Malta, Oito Deitado, flor-de-lís, mandalas e vários outros símbolos hieráticos e místicos.

A exuberância do uniforme dos cangaceiros tinha tamanho impacto visual que até mesmo seus arqui-inimigos — as volantes e forças policiais da região — começaram a imitá-los. Da mesma forma, os sertanejos passaram a produzir versões populares da indumentária cangaceira, buscando copiar os padrões estéticos do bando mítico que fazia medo até aos mais poderosos coronéis. Muitos acessórios e elementos da indumentária cangaceira se perpetuaram ao longo do século XX. A influência da estética cangaceira esvaeceu após o desbaratamento dos últimos grupos bandoleiros e o recrudescimento da repressão do Estado, mas sobreviveu na literatura de cordel e na arte popular. Algumas décadas depois, Luiz Gonzaga, o célebre "Rei do Baião", fez ressurgir o interesse pela indumentária cangaceira e fortaleceu nacionalmente a percepção da estética do cangaço como um símbolo da cultura popular nordestina.

Se o resgate da indumentária cangaceira ajudou a valorizar o folclore nordestino, por outro lado, abriu brecha para que políticos de fora do Nordeste ajudassem a consolidar uma insólita tradição de reduzir o chapéu meia-lua de couro a um pastiche caricato, utilizado em campanhas eleitorais para simular uma afinidade cultural forçada com a região. O expediente quase nunca produz o efeito pretendido, quase sempre descambando para o estereótipo e a artificialidade. O reacionário Sergio Moro foi o personagem mais recente a recorrer ao pastiche, levando ao inevitável questionamento: o que diria Lampião, assassinado pelas forças repressivas do Estado, ao ver o ex-ministro, que propôs carta-branca para policiais exterminarem pobres nas periferias do Brasil, usando o seu chapéu?

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