Antonio José Medeiros

O fisiologismo é a política hegemômica no Brasil e o pragmatismo perdeu eficácia eleitoral

  • segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Foto: Rede Brasil AtualCongressistas
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“A situação hoje é diferente” – ouvi essa afirmação várias vezes, na última campanha eleitoral. De candidatos, de lideranças e filiados do PT e de alguns aliados-coligados. Não ouvi dos eleitores; pelo contrário.

A situação é diferente em que? De que diferença estamos falando?

Nas análises dos resultados eleitorais, a afirmação tem sido repetida: “a sociedade em que o PT nasceu, não existe mais” – disse o Jacques Wagner; frase semelhante li num artigo do Frei Beto. E outras variações têm circulado, pela voz e/ou texto de lideranças e acadêmicos, inclusive do governador Wellington Dias, em entrevista recente ao jornal O Globo.

Há tempo, Marcio Porchman tem chamado a atenção para isso. Inclusive no livro editado pela Fundação CEPRO – Piauí, Trajetória e Transição Econômica. Sua tese é que o Brasil está passando da sociedade industrial para a pós-industrial, o que muda o perfil das classes trabalhadoras (no plural).

Alguns analistas destacam aspectos que considero mais conjunturais: o papel das redes sociais (e seus fakenews); o fundamentalismo religioso casado com o avanço da Nova Direita; a crise da democracia representativa que também contribui para o descrédito na própria Política.

Outros colocam o foco nos “temas novos”: a ecologia (o futuro será verde) ou nos movimentos sociais identitários ou de defesa dos direitos culturais.

Essa discussão sobre as mudanças no mundo e no Brasil tem algumas décadas. Suas raízes são as mudanças estruturais: o impacto da revolução da telemática e da globalização que abrem espaço para o neoliberalismo e provoca a crise do Estado-nação. Ou a perda da centralidade do trabalho com o surgimento da sociedade do conhecimento, quando a ciência se torna uma força produtiva.

E some-se a tudo isso, em 2020 (e 2021), a Pandemia do Covid-19.

Mas vem a pergunta que não quer calar: essas mudanças só colocam problemas para as Esquerdas? E os partidos de Direita? Como explicar a proliferação de partidos e o crescimento eleitoral das forças Clientelistas Tradicionais, no Brasil? Os resultados das últimas eleições municipais mostraram a persistência ou ressurgimento das forças conservadoras. O Centrão é o legítimo herdeiro da velha Arena da Ditadura de 1964.

Não há, pois, como fugir da referência às práticas concretas da Esquerda e Centro-esquerda, além dessas questões estruturais.

Na campanha, a expressão “a situação hoje é diferente” teve outra conotação também. Insinuava que o PT e as Esquerdas ou adotam certas “práticas pragmáticas” (não é redundância) ou não terão sucesso eleitoral.

Será, então, que diferente é a situação ou diferente é a prática dos partidos de Esquerda, em especial o PT, que se querem programáticos? Se for assim, a situação não é diferente, voltou a ser igual a 40 anos atrás. O “diferente” ficou parecido com o “tradicional”. Ou o “antigo” neutralizou e deturpou o “novo”?

O melhor caminho é aprender com a história recente.

Ganhamos as eleições de 2002 ainda marcando a diferença em relação à política tradicional. A “Carta aos Brasileiros” se dirigia às elites econômicas e sociais do país e não aos partidos. José de Alencar era, em certo sentido, um outside partidário.

O PT no governo nacional e em alguns estados enfrentou a questão da governabilidade, no presidencialismo (ou “governadorismo”) de coalisão. Mantivemos um bom programa de políticas públicas, mas fomos pressionados no Congresso pelo “toma lá, dá cá”; administramos mal a questão: deu na ação penal 247 (vulgo mensalão).

Nas eleições seguintes, ampliamos, ou talvez, desfiguramos, nossa política de alianças -  aí sim tendo como referência os partidos tradicionais. A convivência passou a ser nos palanques; perdemos boa parte de nosso discurso.

Depois, foi necessário ter (o que é legítimo) a participação de aliados no governo. Se no Brasil, ainda mantivemos um programa razoável, nos Estados as referências programáticas foram se perdendo na fragmentação do Executivo.

Chegamos, então, ao ponto-chave: mantidas as coligações proporcionais, tivemos que ser “pragmáticos”, usar “armas do mesmo calibre”. O PT se tornou “mais igual”, como o PC do B. Situação com a qual já convivia o PDT e o PSB; e à qual PSOL, PSTU, PCO ainda resistem, em boa parte.

O ponto de partida do processo é o “eleitoralismo não-programático”: a lógica da eleição e mais ainda da reeleição acima de tudo. Daí vêm as coligações e a relação com os apoiadores nas bases. No caso dos partidos tradicionais isso leva ao fisiologismo, ao adesismo, como aconteceu nos governos Lula e Dilma, depois no governo golpista do Temer e está acontecendo agora no governo de extrema-direita do Bolsonaro.

A direita neoliberal apoia, embora se sinta incomodada. Os fisiologistas apoiam e apoiarão enquanto o governo for este. O fisiologismo continua sendo a política hegemômica no Brasil. Ainda bem que a Esquerda e Centro-Esquerda ainda não chegaram a esse ponto.

Consequência séria: a militância partidária se transformou em “apoiadores de candidatos”. E por fim, boa parte do financiamento das campanhas assumiu as formas clientelistas e patrimonialistas tradicionais.

Formação política? Formação política exige coerência entre teoria e prática; não é possível formação sem referência programática.

Volta às bases? Por isso é importante entender as características da nova configuração da sociedade brasileira, suas demandas, quais as possibilidades de se tornarem bases da Esquerda e Centro-Esquerda.

Um partido com vocação de governar a sociedade e não só representar as classes populares tem que ser capaz de articular política institucional, organização e mobilização social. As políticas públicas são o elo entre essas duas dimensões. Políticas públicas de estado não são monopólio do Executivo; são uma resultante da disputa na Sociedade, no Parlamento e com o Executivo.

Voltar a acreditar na eficácia administrativa: ela a referência para a criação de bases sociais e políticas reais. Não só em nível federal; mas também nos governos estaduais e municipais.

As alianças, porque fisiológicas, não asseguram lealdade; os rompimentos e as traições estão aí para provar. Essa é a dura lição a aprender: chegamos ao limite; o pragmatismo perdeu inclusive sua eficácia eleitoral.

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