Acilino Madeira

Nesses tempos é preferível as lições literárias aos ensinamentos da filosofia e da economia política

  • sábado, 4 de setembro de 2021

Foto: Montagem pensarpiauíLivros

 

Amanheci mais cedo do que de costume e já cantando desafinado, imitando os galos de Tambaú. Desafinado e desconcertado mesmo, porque não consigo acompanhar e nem cortar o dobrado ensaiado pela banda militar para abrilhantar o 7 de setembro de Bolsonaro.

Maluquice geral. Eu que estou vivendo para ver um presidente da República e sua malta de seguidores - generais em seus labirintos de ufanidade, corporações de militares e milicianos sequiosos de melhor repasto, políticos interesseiros se refestelando e uma legião de anjos pentecostais decaídos - tomando de conta indebitamente das cores, dos símbolos e das festas cívicas nacionais.

Ainda é de madrugada e só escuto as falas na televisão da sala, reprisando os jornais de ontem com as mesmas pautas cotidianas: as mortes continuadas pela velha e pelas novas cepas do covid-19, a Amazônia e o Pantanal pegando fogo, a gasolina nas alturas, o desemprego, a miséria da população e violência campeando solta. Enquanto o mundo todo procura se recompor em meio as crises econômica, ambiental e humanitária pós-pandêmicas, o Brasil expõe suas mazelas e o rosto tristes dos curumins e das cunhãs em frente ao Supremo Tribunal Federal que vacila em lhes assegurar os direitos de povos originários.

Pensando estar no interior da trama do “Não verás país nenhum”, de Ignácio Loyola de Brandão, desvio meu olhar para estante de livros como quem desembarca de um pesadelo, na procura de uma realidade fática qualquer, feito a personagem que queria ser gente em “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen.

Como eu gostaria de declarar meu amor pelo Brasil real de Celso Furtado, pelo Brasil profundo de Ariano Suassuna, até mesmo pelo Brasil ingênuo e idílico de Policarpo Quaresma, em seu triste fim, imaginado e escrito por Lima Barreto.

E por falar em Lima Barreto, talvez tenha sido este grande escritor brasileiro pioneiro ao descrever ou mesmo dissecar o sentimento “patriótico” e também de perda dos militares em meio a avidez das elites nacionais. Policarpo Quaresma é mesmo muito parecido (resguardando a sua loucura resignada, branda e ingênua) com os generais bolsonaristas que, como ele, ao longo de suas carreiras nunca viram e nem estiveram à frente de uma batalha.

O que mais dói no Brasil de Bolsonaro é a danada da desesperança. Aliás, quando falta a utopia e a ideologia desagua no mar do rancor e da belicosidade sem motivo é preferível as lições literárias aos ensinamentos da filosofia e da economia política, ao menos se ganha em termos de ludicidade, para que não nos afoguemos em mágoas oceânicas, porque o bolsonarismo vai passar, vai passar sim e até virar termo anedótico.

Paradoxalmente, quando Jair Bolsonaro se viu montado no poder não poupou críticas debochadas ao Brasil africano que sempre foi. Numa total ignorância histórica, comparou descendente de negros quilombolas a bovinos, calculando o peso de cada um em arroba. Isso tudo, como animador de auditório, no Clube da Hebraica, em São Paulo. Tal atitude, de quem pretendia ser o representante máximo da nação, representou dupla gafe, em falar do boi em cima do couro: os negros construíram a nação brasileira e os judeus também foram comparadas e tratados como animais irracionais pelos nazistas na época de Hitler.

Os escritores africanos contemporâneos, como José Eduardo Agualusa e Mia Couto, também percebem que a literatura latino-americana é marcadamente influenciada pelo pensamento africano. O realismo fantástico é uma herança africana. Daí ser possível encontrar paralelo das loucuras de Bolsonaro e seus generais de algibeira nos personagens militares de Gabriel Garcia Márquez. Em que pese a influência de Miguel de Cervantes na literatura espanhola de latino américa. Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança representam bem o real significado de caçadores de esperança.

Se Bolsonaro não tivesse a patente de capitão (da reserva) e sim de coronel, alegoricamente serviria de comparação ao personagem de Gabo, do livro “Ninguém Escreve ao Coronel”, ilhado em seus dias finais esperando uma carta que não vem do continente, ao lado de sua mulher asmática e de um galo de briga que pertencia a seu falecido filho.

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