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Mano Brown e Silvio Almeida: da destruição da arquibancada à canalização do ódio

Cantor e professor conversam sobre as transformações da sociedade

Foto: DivulgaçãoMano Brown e Sílvio de Almeida
Mano Brown e Sílvio de Almeida

O cantor Mano Brown recebeu nesta semana, no podcast Mano a Mano, o advogado, professor e escritor Silvio Almeida. “Se tem uma coisa que eu sou, é professor”, enfatiza o convidado. Em mais de duas horas de conversa, a política foi o fio condutor para todos os assuntos: economia, racismo e até futebol. História, ancestralidade e armadilhas do colonialismo.

Brown lembra que o pai do professor era esportista – Lourival de Almeida Filho, o Barbosinha, foi goleiro de várias equipes, inclusive o Corinthians. “Na época em que não ganhava do Santos”, provoca o rapper, santista. O alvinegro da capital ficou 11 anos sem vencer o rival praiano pelo campeonato paulista, até 1968. Barbosinha atuou pelo Corinthians até o ano seguinte. Ele morreu em 2015. “Meu pai tem uma força simbólica muito forte. Muito elegante, ele era um sujeito que gostava de dançar, dançava muito bem.” Silvio lembra de uma fotografia do time de aspirantes do Corinthians em que aparecem Barbosinha, em pé, o jovem Rivellino, agachado.

Fetiche pelo livro

O cantor quer saber por que Silvio Almeida foi para o “caminho da intelectualidade” em vez do esporte, o que o advogado atribui a um “arranjo familiar peculiar”. Ele conta uma história que descobriu recentemente:

Seu bisavô paterno, vindo de Campinas para São Paulo, foi sobrevivente da gripe espanhola no início do século passado. Mas chegou a ser dado como morto e jogado em uma pilha de vítimas, até que alguém percebeu que essa pilha se mexia. “Eles puxaram e tinha um rapaz vivo, era o meu bisavô.”

Que participou da fundação da Vai-Vai, escola de samba fincada no bairro da Bela Vista, o “Bixiga”. Ao mesmo tempo, uma de suas tias conseguiu entrar na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, embora não tenha conseguido concluir o curso. Mas influenciou o sobrinho de várias maneiras, por ler muito e por se dizer de esquerda. Foi aí, diz, que ele desenvolveu um “fetiche pelo livro”.

Neoliberalização do futebol

Ainda na conversa sobre futebol, o professor lembra da presença “inevitável” da política inclusive no esporte, que já expressava divisões em classes sociais – com a distribuição dos torcedores em geral, arquibancada, numerada. As transformações dos estádios em “arenas”, o crescimento da transmissão dos jogos pela TV, o pay per view. “Começa a neoliberalização do futebol, entra nessa lógica das transformações econômicas.”

E qualquer transformação passa pela política, enfatiza.

“O Brasil institucional é uma grande tragédia. Racial, autoritária, economicamente é um país que não consegue se livrar das amarras do subdesenvolvimento, é um país profundamente autoritário”, afirma. Para essa construção institucional, ele considera que a questão racial será fundamental. “Para a gente estabelecer um marco de convivência.”

O gorro faz parecer bandido

Silvio Almeida conta que, ainda no jardim de infância, em um dia frio, todas as crianças estavam de gorro, mas a professora tirou o dele, porque isso o tornaria parecido com um bandido, segundo afirmou. A mãe do menino foi à escola, indignada, protestar. Foi uma primeira percepção. Além disso, a música dos Racionais colaborou com sua formação: “Eu aprendi com o rap, com a geração de vocês, eu entendi o que é ser preto”.

A conversa envereda para a economia. Silvio aponta o imperialismo como fator que trava a soberania do país. “Toda vez que entra numa janela de desenvolvimento, esses esforços são obstruídos.” Brown pergunta sobre o empreendedorismo, uma questão que às vezes se relaciona com um discurso de redução do Estado.

Estado para matar e bater

“Tem que ter Estado”, diz Silvio. “Tem muito Estado para matar preto, bater em professor, para de alguma forma desarticular a vida comunitária no Brasil, mas não para estabelecer algum tipo de regulação na economia que vai permitir, por exemplo, absorver (mão de obra). É discurso ideológico para fazer com que as pessoas se conformem com o fato que elas não vão mais ter proteção social, mais direito do trabalho, mais carteira assinada, mais Fundo de Garantia.” 

O que abre portas, de alguma maneira, para o avanço do discurso religioso, apesar de um Estado teoricamente laico. “As teorias do Estado vão de alguma maneira aproximar o Estado com a religião. Mas o estado racional, contemporâneo, nasce de um rompimento com a religião.”

Os dois falam também do ódio que toma do país. “A gente não consegue ter luto, elaborar trauma, é uma pedrada atrás da outra, escravidão, ditadura… (…) Um país que não consegue tecer laço de solidariedade.” Mas a resposta passa pelo ódio, acreditam. “O nazismo tem que ser odiado, dia e noite. Não tem conversa. A gente tem que odiar a fome, a pobreza, e a gente não faz isso. (…) Tem muito ódio, não tem canalização, direção. Tem que canalizar para a transformação.”

Um presidente negro no Brasil – utopia ou realidade?, pergunta Brown. Vai vir, responde Silvio Almeida, mas é preciso estar preparado, porque não existe salvador. “Qualquer projeto de transformação é coletivo, é um projeto e país, tem que ser construído por muita gente.” É preciso, assinala, “compromisso com as mudanças nas condições que fazem da população negra, a população brasileira, refém das injustiças cotidianas”.

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