Pensar Piauí

Gonzagão e Gonzaguinha – diferentes – fizeram o Brasil respirar

Respirar no Brasil de hoje é expulsar Bolsonaro do poder

Foto: Montagem pensarpiauíGonzagão e Gonzaguinha
Gonzagão e Gonzaguinha

Por Tarso Genro, ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, no SUL21

“Eu não consigo respirar” – George Floyd

Luiz Gonzaga (1912 – 1989) foi o Bach e Villa-Lobos do baião, xote, xaxado: uniu o Brasil do pequeno município de Exu ao extremo sul da nação, pela música em torno da graça. Sua música vinha das raízes do sofrimento e da pulsão do amor e da violência – na seca e na miséria- na luta pela vida que acompanha a história do povo do Nordeste. Gonzagão da “Asa Branca” e do “Assum Preto” cantava que “tudo em volta é só beleza, sol de abril e a mata em flor, mas Assum Preto, cego dos olhos, não vendo a luz, canta de dor”.

Gonzaguinha (1945 – 1991), seu filho, foi fruto da mistura do nordeste e do Rio, esquerda que explodiu cantando na ditadura, o “Comportamento Geral”, música logo proibida em todo o país. Era o jovem sofrido que mantinha uma relação atormentada com o pai autoritário e gênio da música, que falava aos homens e mulheres do sofrido Nordeste e assim celebrava a dura arte de viver.

A relação entre os dois, de repulsa e crises sucessivas de rejeição familiar, ao fim e ao cabo, muda pelo impulso da arte e pela tolerância que a memória adormecida do avô Januário fazia vicejar. O vínculo se renova no show em que o dois – Gonzagão e Gonzaguinha – promovem percorrendo o Brasil no final de 79, com a saga do “Vida de Viajante. Iniciada no Rio, a viagem selava o reencontro em torno do mesmo sangue, composto pela dor na dura vida nordestina de Gonzagão, “filho de Januário”, que entregou ao filho Gonzaguinha os primeiros acordes.

A relação entre pai e filho, Gonzagão e Gonzaguinha, é uma parábola da relação tormentosa do Nordeste com o restante do Brasil, onde este espaço do território era visto pelas suas classes ricas somente como um “peso”; como o Sul era visto pelos pobres do Nordeste como um lugar de redenção e progresso. Este imaginário foi mudado em parte, por homens e mulheres – entre outros – como Ariano Suassuna, Nise da Silveira, Jorge Amado, Euclides da Cunha,Celso Furtado, Luiza Erundina, Bárbara de Alencar, Arraes e Lula: o Nordeste como dignidade cultural, bravura e colheita, não somente como um arrabalde das elites.

Gonzagão cantava embalado pela sua relação com a terra seca, os pássaros e as pessoas dos campos calcinados, mas o seu filho – juventude ardente da insurreição contra a ditadura – cantava através do olhos cristalinos da revolução. Era o amor desesperado pela vida, do tipo que não aceita naturalmente o sofrimento alheio. Gonzagão e Gonzaguinha- nas suas vidas reais – são uma réplica de um Brasil que até agora não fez o encontro – entre o Sul e o Nordeste, nos braços da democracia.

Com perdas pessoais da dignidade humana e mortes naturalizadas pela bestialidade negacionista, estamos agora na época em que o país navega entre a tutela militar e as oligarquias escravocratas. O drama político se transformou em sociopatia ao vivo, pura laceração das mentes pelo fascismo, que já ousa debochar do sofrimento de quem não pode respirar. Sem o “charme” da democracia política estabilizada, o “consenso” mínimo funciona para uns e aponta o caminho da morte para outros. E para os neutros, reserva a Infâmia colaboracionista da indiferença.

No filme de Breno Silveira “Gonzagão de pai para filho” ambos cantam “Respeito a Januário”, no início do show de abertura, iniciando o seu roteiro pelo Brasil, pois encontraram na face dura do pai de um, e avô de outro, a marca da resistência, para viver e celebrar a tradição e a luta da poesia. O “Assum Preto” não está mais cego e vê na manhã cristalina, a herança da chuva que faz o verde transparecer brilhante nas gotas iluminadas pelo sol.

Na face dura de Januário e na sua sanfona de oito baixos ambos, pai e filho, reconciliam sua história nordestina e brasileira, no bloqueio sem tréguas contra o inimigo: aquele que censura a música, interdita a poesia, produz a miséria e mata os humanos sem piedade e sem perdão. Ambos, pai e filho, naquele momento uniram – diferentes – o Brasil num canto que parecia dizer: “Eu vou respirar!” E respiraram.

Respirar no Brasil de hoje é expulsar Bolsonaro do poder.

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