Pensar Piauí

Doria ao lançar a vacina: show de marketing, show de informação, show de controle e domínio da situação

O que aconteceu no domingo 17 foi, para além das questões históricas, um trabalho discursivo que merece virar artigo científico

Foto: GGNJoão Dória
João Doria

Por Letícia Sallorenzo, no GGN

O texto sai com 72 horas de atraso (casa, comida, mil coisas, desculpem), porque eu assisti novamente à coletiva do governador de São Paulo, João Dória Jr, durante o início da vacinação contra Covid no Brasil.

Observem inclusive como eu encerrei o parágrafo acima. Dória transformou a coletiva pós-reunião da Anvisa num evento definitivamente histórico, cujas imagens (estáticas ou em vídeo) serão, nos próximos 100 anos pelo menos, a referência futura para o título “vacinação contra covid”. Em cinco anos, estarão, inclusive (anotem e observem) em livros didáticos.

O que aconteceu no domingo 17 de janeiro de 2021 foi, para além das questões históricas, um trabalho discursivo que não só merece que, como eu estou trabalhando para quem, vire artigo científico.

Pra começo de conversa, a equipe. Basicamente, médicos infectologistas. Cientistas. Pesquisadores. E, claro, a enfermeira Mônica Calazans, a primeira a tomar a vacina no país: mulher, negra, trabalhadora, usuária de ônibus, que está na linha de frente contra a Covid no Emílio Ribas. Desnecessário dizer que ela foi escolhida a dedo, né? Virou ícone histórico.

Mas eu falava da equipe que participou da coletiva junto com Dória. Todos autenticamente emocionados (e fazendo questão de destacar isso), todos felizes, todos vibrantes, todos exultantes. Uma equipe unida, com um discurso afiadíssimo, que o tempo todo trabalhava contrastes (nós x eles) no melhor estilo Teun van Dijk de raiz: nós somos a vida, eles são a morte; nós somos a luz, eles são a treva; nós somos [insira aqui um adjetivo positivo], eles são [insira aqui o antônimo do primeiro adjetivo].

Aqui vale destacar alguns desses contrastes, pinçados do monólogo da fala do governador João Dória Jr.:

– Quero enaltecer os médicos e cientistas que flertam com a vida, ao contrário de outros que flertam com a morte; [foi uma série de cutucadas no ministro da saúde e no presidente]

– A vacina do Butantan não é apenas a vacina de São Paulo, é a vacina do Brasil, por isso estamos com a bandeira do Brasil no peito [aviso à galera da esquerda: Dória está retomando os símbolos nacionais, coisa que eu digo que a gente tem que fazer desde 2015! Além disso, o sintagma “Vacina da China / vacina do Dória” caiu no colo do berço esplêndido do gigante Brasil. Agora é “vacina do Brasil”. Pertence à nação. Dória é desprendido o suficiente para oferecer essa tecnologia de ponta ao país.]

– A vacina é eficaz, segura, salvadora, e é o triunfo da ciência contra os negacionistas, que preferem o cheiro da morte [vacina = vida; negacionistas = morte]

– Os negacionistas não têm compaixão, desprezam a vida e se distanciam da realidade de um país, que sofre com a morte; [eles são a morte, nós somos a vida]

– Exorto o Ministério da Saúde a agir com diligência, agilidade e planejamento, pra vacina do Butantan chegar o mais rápido possível aos brasileiros, e pare de recomendar cloroquina. Isso é criminoso! [nós somos organizados, vocês não têm organização; nós trabalhamos com evidências científicas, vocês usam cloroquina]

– Não governamos para dividir, não gostamos de guerra nem de cheiro de pólvora [nós somos a paz e a harmonia, vocês são a guerra e a desarmonia].

– Aqui, lutamos pela vida. E Brasília, luta pelo quê? [governo de São Paulo é vida; governo federal é morte]

Como você percebe, são frases que flertam com o clichê, cheias de efeito, de cunho moral e, como todo discurso populista de carteirinha, bem apelativas a sensações, sentimentos. Elas foram pensadas para fazer você sentir, não pensar.

Então, não fique mal por ter chorado na coletiva de domingo. A ideia era essa, mesmo. Some a isso quase um ano de pressão por quarentena e fique em casa, e se cuide de um lado, contra minha saúde mental como fica, é só uma gripezinha, é só um pouquinho, eu sigo o protocolo e nada vai acontecer comigo de outro lado. Não tem como não chorar. Todos esperávamos pela vacina, e o instituto Butantan trouxe para o Brasil. Dória colou direitinho no Butantan, e atrelou sua imagem e a imagem do governo do estado de São Paulo ao Butantan. Ponto para o Gru!

Esse trabalho sensorial foi magistralmente intercalado com informação concreta, de qualidade, que rende excelentes leads pros jornalistas:

– 4.636.936 vacinas para todos os estados do Brasil sem nenhum prejuízo para o estado de São Paulo (Dória nesse momento interrompeu Dimas Covas para avisar em sua coletiva que, na “coletiva ao lado”, do general Pazuello, o ministro da saúde, “atacava a vacina”. A seguir, fez Dimas Covas repetir esse número exato umas cinco vezes. Um maestro regendo sua orquestra discursiva. Um show de marketing, um show de informação, um show de controle e domínio da situação. Ele voltou a interromper sua coletiva pra comentar outras informações falsas de Pazuello, como o financiamento da vacina). Outras informações excelentes foram dadas durante essa coletiva: Marco Aurélio Sáfadi, o presidente do departamento de infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, avisou que os testes continuam com outros segmentos, e crianças e adolescentes podem fazer parte dos novos estudos; Jean Gorinchteyn, o secretário estadual de saúde, contou que desde agosto Dória avisava que, quando a vacina estivesse pronta, que a demanda seria mundial, logo iriam faltar vacinas, iriam faltar seringas e agulhas, e o governo federal não se definia; e o próprio Dória anunciou que 50 mil doses de vacinas estão sendo enviadas na segunda-feira “pelas empresas aéreas parceiras do governo do Estado de São Paulo, a Tam a Gol ou a Azul” (e o bonito fez propaganda de TODAS AS EMPRESAS AÉREAS BRASILEIRAS) para os profissionais de saúde do Amazonas, que vive um sério colapso em seu sistema de saúde “porque eu não confio no ministério da Saúde”.

O discurso bolsonarista foi minuciosamente desmontado. Quando não foi desmentido na cara dura, foi todo trabalhado no reframing. O tratamento precoce virou tratamento obscuro; o golpe de marketing virou golpe de vida.

Ao final do evento, a sensação de que, se Brasília não tem o controle da situação do país, São Paulo tem (o controle da situação do país, que fique bem claro). Esse controle é regido por um homem de visual impecável que, naquele domingo, ostentava em seu peito uma camisa preta com a bandeira do Brasil ao fundo. Esse homem pouco ou quase nada altera a voz, não se desequilibra, sabe liderar uma equipe.

Tudo, absolutamente tudo no domingo, foi discurso. Inclusive a ciência. Inclusive aquela seringuinha que ficou um bom tempo no braço da enfermeira Mônica Calazans. Como eu disse no meu texto de semana passada sobre o “tratamento precoce”, é asqueroso perceber isso, ainda que Dória dilua o discurso em ações evidentes. Mas é importante deixar algumas observações pra gente levar pro travesseiro e pensar, enquanto a nossa vacina não vem:

– Ao contrário de Bolsonaro, Dória soube criar e aproveitar uma oportunidade.

– Dória percebeu que o presidente não tem capacidade de liderança – algo que ele (o governador de São Paulo) tem de sobra.

– Dória correu atrás de todas as condições que o cacifassem para a corrida da vacina, e surfou, pegou jacaré e nadou de braçada numa onda em que Bolsonaro só tomou caldo.

– Dória fez isso com a maestria de quem sempre trabalhou com marketing. Mostrou-se um bom aluno de George Lakoff, frames e metáforas conceptuais. Mas isso eu vou deixar pro artigo científico, ainda que quem me acompanha por essas paradas tenha percebido que esse texto foi todinho permeado pela teoria de São George.

Observem que, nesse embate (100% político) em torno do gerenciamento da pandemia de Covid no Brasil, há dois personagens antagônicos: o governo, que faz tudo errado, e João Dória, de São Paulo, que faz tudo certo.

Cadê a esquerda nessa equação? Não existe. Não está. Sumiu. Morreu. Escafedeu-se. Faltou à aula.

A esquerda perdeu o bonde da história. 2022 é logo ali e, pelo visto, mais uma vez entraremos com caixotes e tacapes para brigar numa guerra híbrida, virtual, sensorial, discursiva e nada iluminista.

Mas, como disse alguém no Twitter, pelo menos a gente vai estar vivo pra xingar o Dória. A vacina chegou.

Se cuidem.

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