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Avó conta histórias, o neto escreve e ela lança livro aos 85 anos

Obra "A Mística dos Encantados" está disponível nos formatos físico e digital

Foto: Diário do NordesteMaria Toinha
Maria Toinha

 

Escrito por Roberta Souza, no Diário do Nordeste 

Em cada traço da expressão de Maria Moura dos Santos, desvendam-se os caminhos de um mapa existencial. Os passos dados por ela nos últimos 85 anos são guiados por uma identidade negra, bússola para atravessar a fronteira entre dois mundos. Rebento da Lagoa de Bebe, em Paraipaba, a mãe de santo Maria Toinha, como também é conhecida, criou-se dentro da terra de Canaan, no Trairi cearense, e é de lá que ela conta uma história não apenas sua, mas também de seus ancestrais. Relato oral que em 2020 virou livro, sob o título “A Mística dos Encantados” e com a ajuda das letras do neto Marcos Andrade, de 23 anos.

“Eu conto pra ele as histórias e ele escreve. Aí do jeito que eu digo e conto, ele escreve tudo bem direitinho sem errar nem um pé. É inteligente. E quando eu não lembro, que a memória falta, que eu sou doente da cabeça, ele completa”, orgulha-se a avó, responsável pela criação de Marcos e de suas irmãs. Ouvinte primeiro dos causos desde a infância, o estudante do Mestrado em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará, recorda hoje daqueles primeiros anos com emoção.

“Gostava quando ela nos levava para o terreiro, abria um pano debaixo do céu estrelado, dizia que nos sentássemos e começava a contar suas histórias (nessa época não sabíamos o que era energia elétrica). Eu sempre fui muito curioso e lhe perguntava pelos detalhes que por vezes escapavam em seu jeito de narrar e ela respondia, saciando minha curiosidade”,  lembra.

Nessas sessões, quase sempre eram resgatadas as experiências de Maria Toinha como retirante da seca de 1958 e como mãe de santo, missão com a qual ela se conectou muito jovem, desde que teve os primeiros sinais de mediunidade, aos 13 anos. “Ela me influenciou para pensar o que eu chamo de Gramática Encantada, isto é, um conjunto de palavras que emergem de suas experiências com os Encantados e que apontam para uma concepção de Mundo Encantado. Essas palavras fazem parte de um exercício poético de resgate de experiências invisibilizadas, desvalorizadas socialmente, aquilo que Manoel de Barros chamaria de desimportantes”, explica Marcos sobre as narrativas construídas pela avó.

Processo

Uma das preocupações de Maria, expressa logo nas primeiras páginas do livro, era a de “guardar sozinha estas coisas”, enterrando “tesouros” como outros que lhe antecederam fizeram ao partir desse mundo. O neto captou essa ansiedade e associou a outra inquietação pessoal: a de ouvir a voz de uma “mulher velha, negra, mãe de santo e pobre” ser aceita e reverenciada na comunidade.

“O preconceito contra os saberes de terreiro, saberes do universo mágico-religioso da umbanda é o maior desafio que enfrentei ao falar sobre a trajetória da minha avó ou submeter textos em determinados concursos literários”, expressa Marcos, contextualizando, porém, o fato da matriarca já ter publicado contos e poesias em Antologias da Porto de Lenha Editora, da Editora Versejar e em Revistas Literárias, como LiteraLivre e Ecos da Palavra.

O livro “A Mística dos Encantados” começou a ser escrito depois que Maria cantou a doutrina de um Encantando para Marcos, numa tarde de agosto de 2018. “Ela estava sentada numa espreguiçadeira e eu ao seu lado ouvindo suas canções, nesta época ela estava muito doente. Eu tinha um computador em meu colo e anotei a canção do Mestre Lorentino tão logo ela cantasse. Em seguida, gravei a história que ela me contou sobre um trabalho de umbanda que ela fez para curar uma moça doente no terreiro do Mestre Antônio de Mel, em Paracuru por volta de 1957”, recorda. O relato foi enviado para o professor e antropólogo Gérson Júnior, que incentivou o estudante a dar continuidade ao trabalho.

Nas palavras de Maria, a obra, resultado de mais de 100 horas de gravações, traz “um aprendizado sobre a umbanda, sobre os encantados, os trabalhos, as caridades, as curas que se faz nas pessoas doentes”. Falar de forma literária sobre a religião de matriz africana que conduziu boa parte de sua vida é, sobretudo, uma forma que ela encontrou de combater preconceitos.

“Eu deixo escrito esse livro pra todos que pegarem e entenderem como é que é. Eu tenho fé em Deus e esperança que um dia esse racismo vai terminar. Vou me encantar e vir pra terra trabalhar”, projeta a mãe de santo, em acordo com suas crenças.

Exemplares

Marcos defende que a identidade da avó aciona uma narrativa reflexiva sobre “a pobreza, a desigualdade social, o preconceito racista contra a umbanda, além de pôr em evidência uma concepção de mundo marcada pelo mistério, pela possibilidade do homem se reconciliar com o sagrado”. Coincidentemente ou não, a publicação, disponível desde o mês de outubro, foi concebida às vésperas do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. 

“Tive a preocupação de reconhecer sempre seu lugar de fala e sua primazia pela autoria do que era escrito. Desta forma, o livro ‘A Mística dos Encantados’ deve ser lido como uma produção de uma mulher negra, mãe de santo e sua contribuição para a literatura brasileira”, expressa o neto de Maria Toinha.

A tiragem tímida, de 30 exemplares, foi viabilizada pelo Auxílio Emergencial que receberam do Governo Federal durante a pandemia. “Não existem políticas públicas de apoio e incentivo aos escritores em nosso município, desta forma tenho trabalhado com o apoio de amigos na divulgação”, observa o estudante. O livro também está disponível no formato digital e pode ser adquirido na plataforma Clube de Autores.

Além dessa obra, avó e neto se empenham em outras duas: o livro “Caminhos Encantados”, que já está finalizado, faltando apenas recursos para publicar, e outro, intitulado “Lavagem Encantada”, que está em fase de construção. Enquanto Maria se coloca à disposição para narrar, Marcos se empenha em fazer a sabedoria da avó ocupar diferentes lugares.

“É fundamental que a Universidade possa reconhecer essas outras formas de pensamento e a contribuição da escrita de mulheres negras para a produção de saberes descolonizadores. A poética da narrativa de Maria Toinha pode contribuir para que a Universidade Pública leve adiante um movimento de escrita estética que abrace outras formas de produção, como poemas, contos, diários, relatos”, acredita, escancarando as portas do lugar onde um dia ela o ajudou a chegar.

Foto: Diário do NordesteAvó e neto
Avó e neto

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