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A pólio voltou e a inteligência foi embora

Quando vemos que a paralisia infantil pode ressurgir com força de hecatombe no Brasil o nó da paciência salta pela garganta

Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência BrasilZé Gotinha
Zé Gotinha

Por Vinício Carrilho Martinez, professor, na Forum

Em muitos aspectos, o breve século XXI parece revolucionário – vacinas, inteligência artificial, por exemplo – e em muitos outros parece cópia malfeita do século passado. Do milênio passado também guardamos lembranças ou temos saudades, quando se caçavam bruxas, havia mais crença na alquimia do que na Ciência, a terra plana era vertiginosa, os nazistas criavam mitos (como Ermínio) ou os mitos medievais simplesmente desafiavam o Rei Arthur e nos matavam nos becos da profunda ignorância.

Quando vemos que a paralisia infantil pode ressurgir com força de hecatombe no Brasil (e em outros lugares do “mundo civilizado”), porque houve negacionismo fascista até 2022 ou porque indivíduos “autovacinados” se negam e negam a seus filhos e filhas (bebês de colo) a vacina Sabin, o nó da paciência salta pela garganta.

Não adianta o discurso torpe de que a vacina é um direito (e não obrigação), pelo fato único de que a ninguém a dado o direito de impingir a outrem qualquer forma de sacrifício, dores, mutilações, deficiências permanentes ou a morte. Quando se fala da vacina COVID-19, por ser emblemática, então se some o fato de que ninguém pode contaminar o Outro porque não quer se vacinar.

A única hipótese ética, legal, de se recusar a vacinar exige que a pessoa tenha no mínimo 18 anos (maioridade) e que a possível moléstia a ser contraída não traga ameaça à saúde pública. Fora disso, a cobertura vacinal é obrigatória, especialmente, quando envolvem a saúde de bebês, como é o caso da vacina contra a Pólio: a paralisia infantil.

Ignorância, má-fé, crendice popular, falta de pudores públicos com a vida dos outros, são gravíssimos quando partem de políticas governamentais, como tivemos no Brasil em 2020; porém, não é menos hediondo, do ponto de vista individual, quando pais e famílias deixam de vacinar seus filhos e filhas contra a paralisia infantil e muitas outras ameaças virais.

Há muitas décadas, não se tinha a precisão científica de hoje e, por isso, a vacinação de bebês contra a Pólio não se fazia de imediato como atualmente. Não era negligência dos pais, da família, atacados por crenças irracionais (invocando-se suposto direito liberal de fazer mal propositalmente a outrem), era simplesmente o desconhecido no mundo científico – daí que se vacina após três, quatro meses. Porém, se vacinava. E mesmo vacinando, alguns contraíam o vírus antes da dose salvadora.

Aos dois meses de idade tive Pólio, com todas as sequelas posteriores que a doença provoca, além das restrições de locomoção. Não foi negacionismo dos meus pais, foi o retardo no tempo do conhecimento científico. É obvio que não culpo médicos por isso, culpo políticos neonazistas de sempre, a desviar recursos inestimáveis da saúda, da educação, da Ciência. O próprio Zé Gotinha esteve fora das vistas por muito tempo – num estágio de exceção em que a negação da vida era a referência pública.

Portanto, é com sobras de indignação que leio as preocupações do atual ministério da Saúde, alertando que a cobertura da Pólio está muito atrasada, ainda mais por falta de vontade, movidos por crenças abomináveis e tolas, perniciosas, e que os casos podem subir muito no presente. É com dor no coração que escrevo sobre isso, porque fui vítima dessa tragédia e não há remédio, a não ser a vacinação. Não há como remediar depois que o organismo é atacado e seriamente abalado.

Realmente, só com muita ignorância na mente e frieza de valores humanos que se nega vacina a crianças, jovens, bebês. Imagine, um bebê, absolutamente indefeso, a mercê do crime hediondo de pais e famílias negadoras de qualidade razoável à vida das pessoas que ainda vão demorar tempos para se pronunciar sobre si mesmas, sobre seus pais culpados por atos “conscientes” e dirigidos a lhes fazer um mal permanente.

É imperdoável para mim, não há como desculpabilizar qualquer pessoa que se fie nesse alegado “direito natural, liberal, de não vacinar” e ameaçar tão gravemente a vida de uma criança, de um bebê ainda incapaz de pedir o próprio leite materno.

Os pais, como sempre, costumam ser piores do que as mães – também neste quesito. Os pais são ainda menos racionais e entre os que se declaram “auto vacinados” (o famoso a “natureza cuida”) a ignorância vem bem acompanhada do crime de se atentar contra o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (bebês e crianças).

Por isso, defendo que todo o Ministério Público deveria ser acionado diante desses casos, obrigando à vacinação contra a Pólio e ajuizando contra os pais e servidores públicos que se recusem ao cumprimento dessa obrigação pública de fazer.

Uma história também pode ilustrar o que penso sobre a não vacinação contra a Pólio: Certa vez, num grupo de 10 amigos, demos uma incumbência a um pai negacionista e, com a mãe (meio absorta com as informações, com meu próprio exemplo de muletas à sua frente), levamos sua filha recém-nascida para vacinar.

Na volta da missão inútil (“comprar coca cola levando garrafa de fanta”), o pai soube do feito e que ainda responderia judicialmente por seus atos. Furtamos a vontade de dois pais subsumidos pela invasão sideral e salvamos uma menina – hoje já uma mulher, talvez até seja mãe – da extrema crueldade, que era padecer o resto de sua vida (se não morresse no berço) com as mais graves sequelas. Eu conheço muito bem essas sequelas, convivo com elas dia e noite – e sou exemplo que a vacinação deve ser obrigatória.

É óbvio, portanto, que não existe direito nenhum em não se vacinar crianças e pessoas desassistidas. É a pronúncia do direito à vida. E mais ainda se falamos da vida de bebês que apenas almejam os cuidados dos pais.

Vinício Carrilho Martinez é professor associado da UFSCar, pós-doutor em Educação, Direito e em Ciências Políticas, além de doutor em Educação pela USP e em Ciências Sociais pela UNESP. É também coordenador do canal “A Ciência da CF88”, no YouTube.

Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do Pensar Piauí.

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