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A história do padre piripiriense que perdeu pai, mãe e irmãos para Covid

No mês de abril, a Covid-19 devastou a família do padre Gilvan, levando o pai, a mãe e dois irmãos

Foto: Whats AppPadre Gilvan e os pais
Padre Gilvan e os pais

Padre Gilvan Manuel é natural de Piripiri. Hoje reside em Fortaleza, onde é sacerdote. No mês de abril, a Covid-19 devastou sua família, levando o pai, a mãe e dois irmãos. O padre teve a oportunidade de dar a extrema unção aos pais.

Internado em Piripiri, o primeiro a falecer foi o pai, nas primeiras horas do dia. No mesmo dia, por volta do meio dia, faleceu o irmão Vicente, que morava em São Paulo e já tinha uns dias também internado. Quatro dias depois, veio a óbito à sua mãe. No dia seguinte, a irmã, Rosa Maria. Nenhum deles tinha comorbidade.

Foto: WhatsAppCom os pais, no hospital
Com os pais, no hospital

Os pais, dona Toinha e seu Manoel Anísio, eram moradores do bairro Prado, em Piripiri. Eles ficaram internados no Hospital regional Chagas Rodrigues. 

O irmão, Vicente, que morava em São Paulo, foi proprietário da Drogaria Vick em Piripiri. Seu Manoel Anísio trabalhou por alguns anos na Câmara Municipal de Vereadores. “Há muito tempo não tínhamos nenhuma morte em nossa família. Foi muito rápido. Minha avó teve 12 filhos”, relata o primo do padre Ivanildo da Silva, filho de Rosa Maria.

Pelas redes sociais, o padre externou sua dor e emoção. Mas deixou claro que não há desespero. “Onde existe desespero falta fé”, afirmou.

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Depoimento do padre Gilvan

O jornal O Povo, de Fortaleza, publicou reportagem sobre o drama do padre Gilvan. Veja:

"É preciso aprender a tirar o belo de uma tragédia", diz padre que perdeu pais e irmãos

O sentimento amargo de perder um ente querido é digerido das mais diversas formas dentro da individualidade de cada pessoa. A dor e o luto caminham lado a lado, até que o tempo venha cumprir seu papel de cicatrizar as feridas abertas pela perda. Desde o último ano, essa dor tem sido uma constante no Brasil e no mundo.

Dentre as mais de 380 mil vítimas da Covid-19 no País estão os familiares do padre Gilvan Manuel da Silva, natural de Piripiri-PI, responsável pela Paróquia São Pedro e São Paulo, no bairro Quintino Cunha, em Fortaleza. Aos 40 anos, prestes a completar dez anos de sacerdócio, padre Gilvan viu uma tragédia se instalar em sua vida.

Em um intervalo de cinco dias, o pároco perdeu o pai, um irmão, a mãe e a irmã para a Covid-19. O padre viu sua vida ser chacoalhada em um dos períodos mais simbólicos para os cristãos: a Páscoa. Dentro do cristianismo, a Páscoa é o momento de celebrar a ressurreição de Jesus Cristo, além de servir como um ciclo anual de renovação de fé e esperança.

No dia 31 de março, o Padre recebeu a notícia do falecimento do pai pela manhã e, logo em seguida, no mesmo dia, veio a notícia da morte de seu irmão. Quatro dias depois, na manhã do domingo de Páscoa, o roteiro se repetiu. Gilvan recebeu a notícia de que mãe não havia resistido, horas depois veio o comunicado do falecimento da irmã.

Em meio a tanta dor, Gilvan confiou em Deus. O padre encontrou na fé, no sacerdócio e na sua família a força para seguir. "Humanamente, isso é muito doloroso. Mas, pela fé, não posso ser incoerente com aquilo que eu professo. Se eu digo para as pessoas que eu creio na ressurreição, agora isso é exigido de mim. Se eu digo para as pessoas que precisam ser fortes diante da dor e do calvário que estamos passando, isso agora também serve para mim."

Em uma pequena sala, na paróquia São Pedro e São Paulo, Padre Gilvan recebeu a reportagem do O POVO para uma conversa de pouco mais de 40 minutos. Na entrevista a seguir, Gilvan conta sua trajetória, desde o menino humilde, no interior do Piauí, que já sonhava em ser padre, até o momento de dor atravessada durante este ano. O religioso dá uma demonstração de fé e esperança durante tamanha adversidade.

O POVO - Como foi o seu chamado para iniciar a caminhada na fé?

Padre Gilvan - Eu sou de uma família de 12 filhos, bem tradicional do interior do Piauí. Somos católicos, então sempre íamos à missa, sempre participava das atividades da comunidade. O interessante, que meus pais sempre contavam, é que, desde os cinco anos de idade, eu disse para eles que iria ser padre. Para uma família pobre e do interior, jamais imaginaram que poderia ser tão verdadeiro aquilo que uma criança dizia. Talvez eles achassem que, por ir à missa e ver o padre, eu tivesse essa vontade. Esse desejo foi se configurando cada vez mais, tomando consistência, à medida que eu ia crescendo, sempre brincava de missa. Celebrava missa com biscoito e suco de uva, como quase todas as crianças que têm esse desejo de ser padre. Uma coisa muito interessante da minha vocação é que eu não me sinto mais especial do que outro padre, porque, para a vocação, é Deus que tem os seus caminhos, tem homens que estavam noivos e deixaram o noivado para ser padres. Não existe a melhor vocação, eu que agradeço a Deus por, desde criança, ter plantada essa semente dentro meu coração. Eu confesso a você que hoje, aos 40 anos, o desejo é o mesmo de criança, de ser padre, de colaborar com a Igreja, isso me faz muito feliz.

OP - Recebeu apoio ao manifestar o desejo de ser padre?

Padre Gilvan - Os meus irmãos acompanharam em silêncio, nunca tive um irmão que dissesse que eu não iria ser padre, assim como os meus pais. Eles acolheram o meu desejo e foram percebendo, na infância, através das brincadeiras, que sempre eram direcionadas à Igreja. Por mais que eu brincasse com os meninos de bola e tudo mais. Eu podia até brincar de bola com eles, mas depois eles tinham que ir para a missa. Essa era nossa regra. Já na escola, todo mundo já me chamava de "o padre". Em certos momentos, já na adolescência, eu ficava: "Meu Deus, e se eu não for ser padre?. Todo mundo já me pede a benção." Meu ambiente, tanto escolar quanto familiar, foi muito tranquilo, não posso dizer que sofri bullying, pelo contrário, os outros adolescentes ajudavam, davam apoio e falavam que queriam que eu fizesse o casamento deles. Então, o tempo passou rápido. Na adolescência, o desejo de ser padre permaneceu. Na juventude, naquela fase transitória, que é muito perigosa para todas as pessoas, entre 15 e 18 anos, foi um dos momentos que mais dei consistência à minha vocação. O silêncio da minha família era o apoio deles. Vez por outra alguém dizia para a mamãe: "Se ele for padre, ele não vai casar", e a mamãe respondia, mas eu já tenho 11 filhos me dando netos quase todos os anos, já tenho neto demais.

OP - Como foi lidar com essa decisão durante a sua juventude?

Padre Gilvan - A família foi fundamental, sempre pedia para minha mãe comprar santos, e ela mandava comprar as imagens. Ela era costureira, então, se eu queria a batina de um certo jeito, ela fazia também. Papai ajudava, ele me pegava na igreja e ia deixar também. O meio familiar foi importante. O meio acadêmico também ajudou muito, na minha turma, todos contribuíram. Até mesmo naquilo que era normal na adolescência, já com 15 anos, de paquerar. Até as meninas diziam: "Eu não posso nem namorar, porque ele vai ser padre", como se já fosse uma coisa certa. Mas eu vivi uma adolescência muito tranquila, muito serena. Uma juventude sem problemas, sempre fui muito obediente aos meus pais, aos professores também. Nunca deixei de viver aquilo que a juventude vive, de ir a uma festa, de tomar um sorvete na praça, eu sempre fiz isso. Mas, sempre onde eu estava, existia esse respeito de "ele vai ser padre", mesmo não tendo nada definido.

OP - Como foi o processo de sair de Piripiri e ir para longe de casa?

Padre Gilvan - Nossa família nunca foi uma família abastada, sempre tivemos as nossas limitações, mas temos casa própria. Dos meus irmãos, poucos conseguiram avançar nos estudos, alguns fizeram só as séries iniciais do primário. Os meus pais não tinham também instrução acadêmica. Pelo fato do desejo de ser padre, isso deu uma ascensão maior. Não que eu fosse super inteligente, mas eu buscava não desistir. Outra coisa que não me afastou dos estudos foi que todos os meus irmão precisavam trabalhar. Isso também já os afastava dos estudos. Para uma família que ia viver daquilo que se ganhava durante o mês, os irmãos todos ajudavam. Porque você imagina, 12 filhos na mesma casa para comer e manter uma estabilidade, meus irmãos eram assim. Sempre os mais velhos iam trabalhar para ajudar os pais e os mais novos, eu sou o décimo primeiro filho. Entre aspas, eu tive o privilégio de saber que todos os meus irmão financeiramente ajudavam. Não tenho receio nem vergonha de dizer que um comprava o sapato, o outro comprava a blusa. Tudo para poder sair e poder ir à missa, sempre diziam: "Não trabalhe, só estude, prepare o seu sacerdócio que nós vamos te ajudar", até o dia em que saí de casa meus irmãos ajudavam no que era mais necessário, conseguir o sacerdócio dentro de uma família pobre de 12 filhos, foi uma ascensão muito rápida.

OP - Sempre achou que fosse possível se tornar padre um dia?

Padre Gilvan - Mais recentemente, meus pais diziam que nunca imaginavam ter um filho padre, para nós era uma coisa absurda, uma família pobre ter o filho no altar celebrando uma missa, pensávamos que essa dignidade não era para nós. Depois, mais recente, eu sempre ouvia eles falando isso. Uma vez uma pessoa perguntou se minha mãe era orgulhosa de ter um filho padre, ela falou que não era orgulhosa, mas que era feliz por eu ter conseguido.

OP - Qual é a sua definição de fé?

Padre Gilvan - De acordo com aquilo que a Igreja nos ensina, a fé é um dom. Não se compra fé pronta, ela é um dom. Eu, chegando aos dez anos de padre, depois das situações dolorosas que eu passei, pra mim, a fé é confiar sem desconfiar em Deus. É uma entrega total do homem a Deus. Fico pensando, diante de tantos acontecimentos: "O que é ter fé?". Fé é entrega nas mãos de Deus, é não querer manipular Deus diante das situações, já que Ele é o dono de tudo e o Criador. Tenho essa convicção como cristão e ela é reafirmada porque sou padre, eu ensino isso às pessoas, a confiarem em Deus. Nunca posso duvidar. Fé é confiar sem desconfiar. Quando eu peço a Deus, eu confio. Quando eu clamo a Ele diante de uma situação dolorosa, eu confio. Mesmo que eu seja contrariado, às vezes, nós queremos que Deus realize aquilo que desejamos, mas Ele tem os planos Dele. Ele é o criador da vida. O fato que aconteceu comigo, da morte dos meu pais e também dos meus irmãos, se eu confio Nele, um dia terei uma resposta para isso. Vou esperar essa resposta mediante a fé, que é um dom, que é confiança, é depositar toda a sua vida. É como uma criança que sobe uma montanha segurando nas mãos de Deus, eu me sinto assim, segurando nas mãos de Deus e Ele vai me guiando. Não posso dizer: "Eu confio em Deus e tenho fé", e depois passar a rua sem olhar para os dois lados, não é isso, isso é loucura. Eu confio que Ele vai me guiar, isso é fé.

OP - O sacerdócio foi alicerce para o senhor diante da dor enfrentada?

Padre Gilvan - Muito! Eu não tenho medo de dizer para você que, se eu não fosse padre, eu teria ficado doido. Literalmente, eu teria perdido a cabeça. Teria feito com que a família entrasse em um desespero coletivo. O que é a Semana Santa para o padre? É o coração da liturgia da Igreja, é quando o padre exerce as funções religiosas mais belas dentro da Igreja, ou seja, eu fui privado, porque estava com o pai, a mãe e dois irmãos internados. Na quarta-feira da semana santa, que é o dia em que a igreja se prepara para vivenciar os três dias mais profundos, eu recebi a notícia, de manhã, da morte do meu pai. À noite tive notícia da morte de um irmão. Vivi a quinta, a sexta e o sábado nessa dimensão do luto pelos dois, e mais a preocupação com outras duas pessoas que estavam internadas. Aí veio o domingo de Páscoa, que é um dia glorioso, cheio de glórias de ressurreição, de alegria onde a gente esperava que os boletins médicos seguissem melhorando, da Sexta-Feira Santa para o sábado. Na manhã da Páscoa, às 6 horas, foi o falecimento da minha mãe. À noite, também no domingo, veio o falecimento da minha irmã. Então, se eu não fosse padre e não tivesse esse alicerce, não sei como seria, porque a fé é uma construção. Desde o nascimento, no colo dos meus pais, eu recebi a fé, aprendi a confiar em Deus, aprendi o temor a Deus, que é uma coisa que a humanidade tem perdido muito.

OP - De onde vem tamanha fé?

Padre Gilvan - Eu recebi tudo Dele, a primeira experiência de Deus se faz na família. Isso foi o início da construção, depois o batismo e depois como padre. Eu me considero feliz por ter essa base religiosa de fé para suportar tantas notícias de maneira simultânea. Imagina você ir quatro vezes ao cemitério? Vai para o sepultamento de um. Volta, e recebe a notícia da morte de outro. Você passar 15 dias entre missas de sétimo dia e cemitério, se eu não fosse padre, eu não teria forças humanas para superar. Você pode me perguntar, "E as pessoas que não são padres e passam por isso?", aí eu digo que elas vão viver da fé. Eu tenho a graça de ter fé e ainda ser padre, o que ajudou muito a enfrentar.

OP - Como tem sido lidar com essa dor?

Padre Gilvan - Humanamente, é muito doloroso, o luto tem umas fases, vez ou outra eu tenho um choque. Eu sempre senti vontade de ligar para minha mãe aqui na paróquia, e quando eu penso que vou ligar e lembro que ela não está mais aqui, nem ele (o pai) também, eu sofro, porque tive uma ligação muito estreita com meu pai, minha mãe e os meus irmãos. A ponto de no meu celular aqui, eu ter as câmeras de casa. Muitas vezes, quando eu estava livre das obrigações da paróquia, eu ligava as câmeras e ficava vendo eles, sem eles saberem, né? Trabalhando, aguando as plantas, aquilo ia me confortando muito. Humanamente, isso é muito doloroso. Mas, pela fé, não posso ser incoerente com aquilo que eu professo. Se eu digo para as pessoas que eu creio na ressurreição, agora isso é exigido de mim. Se eu digo para as pessoas que precisam ser fortes diante da dor e do calvário que estamos passando, isso agora também serve para mim. Eu tive essa graça de associar, de maneira muito coerente, com aquilo que eu prego, com aquilo que eu vivo e com aquilo que eu sinto também. O sacerdócio foi de uma força incrível, até para animar os meus irmãos, e também para me sentir forte.

OP - Você se sentiu acolhido nesse momento?

Padre Gilvan - Uma coisa importante foi a presença da Igreja, que foi muito forte. Eu recebi muitas cartas, cartazes, flores de mensagens positivas, no Instagram também, muitas mensagens. Nisso a gente sente a presença de Deus através das pessoas. Vemos como é bonito, mesmo durante a morte dos meus pais e dos meus irmãos, eu peguei as minhas irmãs e nós fomos em outras casas, de outras pessoas, que também perderam seus entes queridos, e eles achavam uma loucura. "Como vocês vêm nos consolar se estão passando pela mesma dor?". Porque isso é importante, eu cheguei a levar um buquê de rosas. Aquilo que eu recebia, eu transmitia para outras famílias. Foi muito importante sentir essa presença, mas afirmo mais uma vez, se eu não fosse padre, não sei o que faria. Porque uma morte tudo bem, você consegue superar, mas quatro? E logo os genitores, aquelas pessoas que são referências e sonhavam também com os meus dez anos de padre, que sentiam que tudo passou rápido. Eles moravam sozinhos, era a casa que eu ia nas férias, era a casa que eu ia na folga. Agora vemos a casa fechada, sem ninguém, para viver é só da fé.

OP - Qual a importância da sua família na sua construção como pessoa e como padre?

Padre Gilvan - Quando algumas pessoas que tinham contato com a minha família souberam que eu seria padre, a minha mãe sempre ouviu que eu seria o filho que estaria mais distante deles (da família). Os outros casaram, mas moram na mesma cidade. Mas aconteceu o contrário, mesmo sendo padre, tendo essa ruptura com a família, eu fui o filho mais presente. Eu nunca abri mão disso como padre. Quando minha mãe veio me deixar em Fortaleza, ela falou que só me deixava no seminário se eu pudesse ter acesso à família. Eu digo para você, eu sempre os visitava. As minhas férias eram em casa, eu sempre proporcionava festas em casa para que a família pudesse se encontrar, os aniversários, o Natal. O nosso Réveillon era sempre celebrado cinco dias antes, porque dia 31 sempre estou na paróquia, jamais poderia deixar a paróquia sem missa para estar com a família. Nós celebrávamos alguns dias antes com tudo que tem direito, fazíamos o vídeo e postávamos só dia 31, meia-noite, porque eu queria estar presente, sempre tive essa ligação.

OP - O que dizer para as pessoas que estão passando por dificuldades nesse momento?

Padre Gilvan - O conselho que eu dou para as pessoas é que não se afastem de sua família. Se você tem um irmão, que tem dificuldade, ligue, visite. Eu fiz uma viagem de Fortaleza a São Paulo só para visitar um túmulo de meu irmão que foi sepultado lá. Foram três no Piauí e um em São Paulo, fui com a esposa e a filha dele, e aquilo para ela foi tão gratificante, saber que um irmão veio de longe só para estar ali no cemitério, dar uma palavrinha e voltar. Isso é ser família. Tomar café com seus irmãos, visitá-los, manter contato com os sobrinhos, independente de classe. Às vezes a gente quer que a família seja como a gente é, mas na família cada um tem que viver a sua vida. Imagina, 12 irmãos, todos são diferentes. Tenho que conviver com cada um. Eu tenho irmãos evangélicos e nós rezamos juntos, conversamos sobre religião. Nada vai macular a imagem da família que a gente guarda. Ninguém vive nesse mundo sozinho, a gente precisa um do outro.

OP - Como ficou a relação de vocês após tantas perdas?

Padre Gilvan - A nossa família já era muito unida pelo amor, agora somos unidos pelo amor e pela dor. Minhas irmãs já estiveram em Fortaleza para me visitar, saber se estou bem, eu também vou lá saber como elas estão, isso se chama família. É muito interessante quando as pessoas valorizam a família, grande ou pequena, mas é preciso valorizá-la. Isso foi fundamental para mim. Os nossos pais não deixaram herança, eram pessoas simples. A nossa maior herança é o amor que a gente tem e a briga que tem entre nós é para saber quem vai cuidar do outro. A nossa briga foi essa, quem vai amar mais um ao outro. A minha família sempre foi tudo para mim, o meu sacerdócio tem a ver com a família. Porque a gente imagina que o padre, ao abdicar da vida familiar, vive exclusivamente para Jesus. Eu vivo exclusivamente para Jesus e para Igreja, mas nunca abandonei a minha família, e não posso abandonar, porque são eles que vão me acolher na minha velhice.

OP - Acredita que, por meio da fé, é possível atravessar esse momento difícil?

Padre Gilvan - Sim, com fé, para quem crê. Porque a pessoa que não crê vai ter outros referenciais. Mas, para a pessoa que crê, independente da religião, como católico, eu tenho o fundamento da minha fé, o evangélico vai ter outra, mas a fé nos ajuda a entender a realidade do mundo que nós vivemos. Nós não temos como ter uma visão exata do mundo, mas a fé, não que ela vá colocar uma máscara nas coisas, mas ela vai nos ajudar a ter sempre horizontes. Morre muita gente, mas a fé nos ajuda a entender. Temos muitas dificuldades no Brasil, mas a fé nos ajuda a entender tudo isso. Temos muitas realidades diferentes em uma pandemia como essa, mas a fé nos ajuda a superar. O próprio Jesus Cristo diz: "Se vocês tiverem fé do tamanho de um grão de mostarda, até as montanhas vão se mover de lugar." Imagina na realidade que nós vivemos, a fé é um ponto fundamental. Ela vai nos ajudar a ser mais humanos, a enxergar realidades que humanamente são difíceis de entender sob uma outra ótica. A fé vai nos dar força para atravessar esse momento difícil, porque nós não podemos ser egoístas. Hoje, encontramos muitas pessoas egoístas, eu como padre escuto muito isso, quando as pessoas dizem: "A minha dor é muito grande", mas não vai existir dor maior que a de Jesus. Isso eu penso toda hora, não posso, como um padre e como cristão, dizer que a minha dor, diante das perdas dolorosas, diante do calvário que eu passei, é a maior dor do mundo, a maior dor foi a que Jesus sofreu para nos dar sentido e redenção em nossa vida. Quem tem fé, isso eu posso afirmar, vai passar por esse momento com mais segurança e tranquilidade. Quem não tem fé e acredita só neste mundo, eu lamento muito, porque terá que ter muito recursos internos e psicológicos e outras coisas mais para poder passar por isso. Porque humanamente nós não conseguimos viver essa realidade, a fé é como um bálsamo que vai nos ajudar a enfrentar. Quem tem fé, aumente a sua fé para poder passar com mais tranquilidade por isso.

OP - Ainda é possível encontrar felicidade nesse momento difícil? Onde procurar?

Padre Gilvan - Nós vamos encontrar sim a felicidade, porque nós não podemos colocar a nossa felicidade nas coisas deste mundo. Isso é o que eu acredito pela fé. Humanamente, eu perdi os meus como muitas pessoas estão perdendo, mas existe um céu, onde a gente vai se encontrar, existe toda uma vida que está nascendo. É preciso que as pessoas aprendam a tirar o belo de uma tragédia. Existe o belo! Se você me perguntar: "Existe o belo na tragédia que aconteceu na sua família?" Eu digo que existe sim. Agora, nós, os irmãos, estamos mais unidos, conseguimos novas amizades. Nós não nos fechamos no luto. A mensagem que eu deixo para as pessoas é que, por mais difícil que seja a situação que você esteja passando, não só a questão da pandemia, seja qual for o problema, nenhum problema é para sempre quando você tem fé, nenhum. Nem a separação de uma família, a perda de um bem, nem a perda de uma pessoa, nem a perda de um emprego. Nenhum problema que existe na humanidade é para sempre quando se tem fé. Porque sempre se abrem novas portas. Eu convido as pessoas a não se fecharem no problema, a não se fecharem no luto, mas se abrirem para essa graça da ressurreição que Cristo traz para cada um de nós.

OP - Diante do problema que estamos vivendo, acredita que a luz no fim do túnel está mais perto do que longe?

Padre Gilvan - Eu acredito que ainda vêm mais dificuldades para a humanidade, até em consequência de como o mundo civil começa a se organizar, de maneira diferente. Eu não posso fazer uma previsão ou algo místico do que irá acontecer com o mundo, mas o convite que eu faço para as pessoas é que estejam preparadas, com a fé muito viva, porque sempre vai existir vida e esperança, mas vamos passar por muitas dificuldades. O próprio Jesus já nos advertia isso na palavra de Deus. "No mundo terei tribulações, mas coragem. Eu venci o mundo". Então, haverá mais tribulações, mas esta fé que chamamos coragem, é com ela que vamos vencer. Até o reino de Deus se fazer presente no meio de nós. Em meio a todo o caos que a humanidade vive, existe sim essa luz, que é a fé, que nos ajuda a ver que o reino de Deus já se faz presente. Mas, para isso, devemos ser pessoas fortes, para enfrentar os novos desafios que a humanidade vai passar, que não são fáceis. É preciso ter uma humanidade muito equilibrada, nesses tempos de luto eu tenho conversado com muitas pessoas que não vivem a humanidade, não vivem aquilo que é natural, eu vivi muito bem com a minha família. Celebramos os aniversários, passeamos, saímos para tomar sorvete, minha mãe e meu pai sempre visitavam Fortaleza, íamos às praias, isso é humano, é lúdico. Quando vem a fé e vem esses momentos, nós afastamos o remorso. Tem muita gente doente com remorso, com ansiedade. Pessoas que viveram para adquirir tudo desse mundo, mas nada serve para elas, estão infelizes. A gente pode ser feliz, temos a beleza de mais de 500 km de praia, fazer um passeio, um café simples na casa de um amigo, uma ligação para o outro, um bem querer, um mimo, um presente. Eu sempre vivo muito isso, eu não faço essa diferença com as flores que hoje eu levo para o túmulo dos meus pais, porque eu sempre dei para eles. Não vai ter diferença. É possível que as pessoas vivam bem sua fé e vivam a humanidade com os pés nos chão e conscientes da realidade.

OP - Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Padre Gilvan - Acho que é preciso se dizer para as pessoas que busquem viver de forma mais tranquila. O mundo está marcado pelo egoísmo e a competição, principalmente no trabalho, mas também em todos os lugares. É preciso viver de forma mais tranquila, a vida é simples. Às vezes você bate o carro ou fura um pneu, isso não vai matar seu dia. Tranquilo, resolve o problema e continua a vida. O peso dessa nova sociedade que nós vivemos, capitalista e competitiva, está roubando das pessoas o mais bonito, que é ser gente, ser natural. O luto é uma coisa tão agradável para mim, porque eu vivo o luto na fé, não na tristeza, no desespero. Saio para tomar um café sozinho, ligo para as pessoas para conversar. Elas acham até estranho, porque imaginam que estou depressivo no fundo da rede. Claro, de maneira emotiva e com a saudade que vai me acompanhar para o resto da vida, mas não é a tristeza que vai ocupar o lugar da ressurreição, da alegria da vida, de ser gente e conviver com essa realidade.

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