Saúde

5 mil piauienses perdidos para a Covid: histórias e análise dos fatos

Matéria conta histórias deste mais de um ano de pandemia e traz a fala do governador Wellington Dias

  • terça-feira, 27 de abril de 2021

Por Sâmia Menezes, jornalista, da redação do pensarpiaui 

São 236.596 mil casos confirmados de Covid-19 no Piauí. Desse total, 230.367 mil pessoas curadas, mas o infeliz alcance de 5.020 vidas perdidas para a doença. No Piauí, temos 77 cidades com menos de 5 mil habitantes. É como se perdêssemos a população inteira de uma cidade como Currais do Piauí, que mais se aproxima com 4.954 habitantes. São vidas que se perdem, histórias que recomeçam, sequelas que ficam para sempre.

O jornalista Marcelo Magno foi um dos primeiros piauienses infectados pela doença, logo no início da pandemia, em março do ano passado. Jovem, ele teve que ser intubado e ficou oito dias internado na UTI. Seu processo de recuperação durou três meses. “Nunca imaginei que fosse Covid. Tinha voltado do Rio de Janeiro, do Jornal Nacional, há uma semana. Eu tinha noticiado no jornal os casos no país. A cobertura ainda era focada nos outros países do mundo. Eu não imaginava que tivesse tão próximo da gente. Nunca imaginei que fosse infectado naquele momento”, conta.

Foto: VejaMarcelo Magno
Marcelo Magno

Ali era apenas o começo da pandemia no Piauí. O Governo do Estado anunciava naquele momento a primeira semana de isolamento social. O primeiro óbito foi registrado no estado em 28 de março de 2020, o então prefeito de São José do Divino, Antônio Felícia. Ainda temos quatro municípios que até o momento não registraram nenhum óbito por coronavírus: Massapê, Tanque do Piauí, Várzea Grande e Miguel Leão.

Infectologista, a médica e integrante do Comitê de Operações Emergenciais do município de Teresina, doutora Amparo Salmito, vê na vacinação a esperança para vencer o coronavírus. "Somente quando tivermos a chamada imunização de rebanho, com cerca de 60% a 70% da população vacinada, podemos falar em proteção ao vírus", explica. "Até lá, temos que manter todos os cuidados (uso da máscara, medidas de isolamento, hienização das mãos), medidas que comprovadamente deram certo em todo o mundo. Aqueles que não o fizeram tiveram uma casuística e uma mortalidade elevadas", completa.

Estudos estimavam 36 mil mortes no Piauí em 2020

Em meados de fevereiro do ano passado o médico José Noronha, diretor do Hospital Natan Portela, externou ao governador Wellington Dias a preocupação de infectologistas do mundo todo na expansão do chamado “novo coronavírus”. Ali, com o apoio dos governadores do Nordeste, o Estado começa a delinear as primeiras ações na luta contra o vírus, a começar pela instalação do Comitê Científico do Nordeste. “O Piauí foi o primeiro estado brasileiro a regrar o uso obrigatório da máscara facial”, lembra Dias.

Os primeira estudos internacionais, no entanto, previam uma situação catastrófica para o Brasil. “Para o Piauí, considerando poucos médicos e poucos leitos, a previsão era chegarmos ao final de 2020 com 36 mil óbitos. Com a expansão que tivemos, houve uma revisão e passaram a estimar 18 mil óbitos. Aquilo era um choque. Trazia medo. Trazia responsabilidade e a necessidade de lidar com a urgência”, conta o governador, na entrevista especial concedida ao pensarpiauí, onde ele fala dos erros do Brasil no enfrentamento da pandemia, suas frustrações enquanto gestor público e o desafio da vacinação rápida da população.

No início da pandemia em 2020, o Piauí tinha apenas 148 leitos de UTI. Hoje são 453, destes 93,4% ocupados. E não são apenas equipamentos. São profissionais de saúde envolvidos, alguns recrutados temporária e exclusivamente para atuarem na linha de frente do enfrentamento da Covid-19 através de dois testes seletivos.

Acompanhe agora a entrevista com o governador Wellington Dias:

Uma luta sem hora certa para acabar

O que antes víamos apenas na televisão se tornou realidade aqui. Hospitais lotados, ausência de leitos e, a parte mais dolorosa, a partida de muitos entes queridos. Nunca vivemos tão intensamente no limiar entre a vida e a morte. "A Covid trouxe para nós, profissionais da saúde, uma experiência nunca imaginada. Vivenciamos o desconhecido e com ele a dúvida do que fazer e trabalhar às cegas. Lemos na história do mundo situação como essa, mas nunca imaginávamos vivenciá-las e fazer parte disso. Tivemos que aprender a lidar com diversos fatores que não era do habitual como a paramentação com inúmeros EPIs e passar várias horas com uma roupa quente e impermeável, coberto da cabeça aos pés; Atendemos pacientes que num piscar de olhos mudava sua condição clínica para pior;  Vimos a vida se findar várias vezes diante dos nossos olhos, sob os nossos cuidados e nada que fazíamos mudava isso", relata Josiane Santos, enfermeira do serviço público e privado de Teresina, trabalhando na linha de frente do Covid desde Julho de 2020.

Ela aproveitou uma pausa no plantão, às 3h da madrugada, para nos enviar esse emocionante relato. "Ao longo desse tempo foram muitas histórias e pessoas que nos emocionaram, que tocaram nosso coração e muitas vezes o partiram,  mas de todos que vivenciei, um caso que me marcou muito, foi da despedida de um pai para sua filha. Com lágrimas nos olhos, ele consolava a moça com a certeza de que não voltaria, e nove dias depois o perdemos. Foi diferente aquele caso! Nunca vou esquecer", afirma. E observa: "De fato, não somos heróis. Somos vidas tentando salvar outras vidas. Perdemos tantos amigos, parentes, desconhecidos e parece que cada perda leva uma parte nossa. Mas, apesar disso, sou grata a Deus pela profissão que eu escolhi e grata por ter contribuído de alguma forma para mudar algumas vidas", declara.

Foto: Arquivo pessoalFernanda Morais
Fernanda Morais

Como ela, a enfermeira obstétrica Fernanda Morais trabalhou no ano passado em UTI materna Covid. "Eu tinha muito medo de trabalhar com Covid por medo de contaminar minha família, mas eu sabia que muitas pessoas precisavam da minha assistência. Foi bastante desafiador primeiro porque eu tinha pouca experiência com UTI e não tinha nenhuma experiência com Covid. Foi muito mais difícil do que eu pensava. Quem está de fora não tem noção do que se passa lá dentro", observa.

Fernanda relata que ficou muito abalada psicologicamente com o primeiro óbito de paciente Covid que ela acompanhou. "Era uma paciente que estava bem, estava se recuperando e de repente foi à óbito. Como assim? Me indaguei. O Covid é exatamente isso: uma incógnita. A gente sabe como o paciente entra na UTI, mas a gente não sabe qual o desfecho final daquele tratamento", declara.

A adaptação à rotina de UTI foi um desafio para a profissional. "Chegava e tinha que fazer toda a paramentação. À tarde, eu suava muito e era muito fatigante ficar com aquela roupa. E depois que entrava na UTI, não tinha como sair, aliás até tinha, mas naquele período tinha uma escassez grande de material e não podíamos ficar desperdiçando. Assim, eu ficava seis horas sem me alimentar, sem poder beber e sem fazer xixi", lembra ela, que foi contaminada logo na primeira semana de trabalho.

Mais de 8 mil profissionais de saúde infectados no Piauí

Somente no Piauí, conforme dados do e-SUS Notifica (consulta em 24/04/2021), 8.413 profissionais de saúde foram infectados desde o início da pandemia, dentre eles 898 médicos e 1.660 enfermeiros. Os casos confirmados de óbitos, através de levantamento dos conselhos profissionais, são de 25 profissionais de enfermagem.

Uma dessas vidas perdidas foi a do médico José Antônio Cantuária, de 62 anos, que atuava na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Getúlio Vargas, no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) do município de Campo Maior e era também plantonista do Hospital Estadual Chagas Rodrigues, em Piripiri. Ele foi o primeiro profissional de saúde de Campo Maior a ser vacinado contra a Covid-19, ainda em fevereiro de 2021, mas não chegou a receber a segunda dose do imunizante. De uma alegria contagiante, ele deixa uma lacuna imensurável na medicina piauiense. Além de idoso, o médico sofria de diabetes.

Na linha de frente também estão professores e militares. Um levantamento de janeiro a março deste ano, apontou que mais de 206 profissionais da educação foram infectados, além de 20 alunos. Dados repassados pelo Comitê de Operações Emergenciais (COE) ao Sindicato dos Professores e Auxiliares da Administração Escolar do Estado do Piauí (Sinpro), que acionou o Ministério do Trabalho para a suspensão das aulas presenciais. Entre os policiais militares o número de infectados é de 1.370 e 40 vítimas fatais, sendo 21 militares da ativa e 18 da reserva.

Órfãos pela Covid

Basta abrir as redes sociais para sentir a dimensão que a pandemia ganhou. São inúmeras as mensagens de pessoas cada vez mais próximas se despedindo de familiares e amigos que partiram. Órfãos de pais, mães, avós, avôs, esposas, maridos e filhos em decorrência da Covid-19.

O Painel Epidemiológico da Secretaria de Estado da Saúde (Sesapi) aponta que as maiores vítimas fatais da Covid-19 no estado do Piauí são idosos nas faixas etárias de 60 a mais de 80 anos. Mas os números de novos casos hoje são maioria em pacientes de 30 a 39 anos, 20 a 29 anos e de 40 a 49 anos. Dentre as comorbidades, hipertesão (47,79%) e diabetes (25,03%) se destacam nos casos fatais.

Foto: Arquivo pessoalFamília de Flávia Carvalho
Família de Flávia Carvalho

Hipertensa, diabética, grávida e obesa era exatamente o perfil da jovem Flávia Carvalho, 29 anos, que morreu em julho do ano passado vítima da Covid-19 na Maternidade Dona Evangelina Rosa. Ela deixou sete filhos: as duas mais velhas vivem em Bacabal-MA e cinco vivem em Teresina com o pai, Rodrigo da Silva e os avós paternos, dentre eles a pequena Maria Cecília, de 10 meses, da qual estava grávida e só teve o convívio de três dias com a mãe.

A morte repentina de Flávia gerou um rede de solidariedade enorme, que garantiu comida, roupas e casa nova e toda mobiliada aos filhos (Jefferson de 5 anos, os gêmeos Lucas e Miguel de 4 anos, Isadora de 2 anos e Maria Cecília), além de reforma da casa do avô. Ajuda que veio de pessoas de diversos municípios piauienses. Muita coisa recebida foi também compartilhada pela família com abrigos e outras famílias mais necessitadas.

Agora o pai e avô estão desempregados. "Toda ajuda é bem-vinda. Hoje precisamos de comida, do leite da neném e fraldas", observa o avô, relatando que teve um momento difícil em que por conta de denúncias infundadas quiseram tirar a guarda das crianças do pai, mas com a ajuda dos vizinhos e assistência social conseguiram contornar.

Foto: Arquivo pessoalGeovanne Silva
Geovanne Silva e Jade 

 

Geovanne Silva é outro piauiense duramente impactado pelo coronavírus. Perdeu a sogra, esposa e filho. Sua esposa, Jade Nascimento, tinha apenas 28 anos e contraiu o vírus com 27 semanas de gestação. Ela ficou dois meses internada e, neste período, o bebê faleceu ainda no útero e a mãe de Jade foi à óbito por Covid-19. Jade não resistiu e também morreu, deixando o marido e uma filha de sete anos, que hoje mora com o pai biológico em Fortaleza.

"Não sei nem o que dizer. Tem dias que não durmo ainda com crises de ansiedade. Choro bastante ainda mais tô tentando viver. Lições é que não perca tempo de viver intensamente como se não houvesse o amanhã, porque, afinal, vivemos pra morrer e não custa dizer que ama a quem amamos todos os dias. É preciso se cuidar sempre, porque não é uma simples doença. Eu não só perdi o amor da minha vida, como eu perdi também o fruto do nosso amor, que foi nosso filho que nós estávamos esperando e minha sogra também. Então o que tenho a dizer é que vamos viver e vamos amar intensamente e o mais importante é cuidar e valorizar", declara Geovanne Santos.

Em 2020 e 2021, a Maternidade Dona Evangelina Rosa registrou 1.143 gestantes internadas em virtude de complicações da Covid-19 e 13 óbitos (6 somente em 2021). Os óbitos infantis em 2021 totalizam cinco, mas apenas um foi confirmado para Covid. Os demais estão em investigação.

Foto: MDERTabela

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