Política

O que o Carnaval pode fazer pelo governo Lula

Mas além do que o governo pode e está fazendo pelo carnaval, o que o carnaval pode fazer pelo governo de esquerda recém-eleito?


Foto: DivulgaçãoLula e o carnaval
Lula e o carnaval

Por Rodrigo de Abreu Pinto, no DCM 

A primeira legislação proposta pelo governo Lula – inclusive antes da posse – foi a chamada PEC da Transição com o objetivo de abrir espaço no orçamento para políticas ignoradas pela gestão anterior.

A emenda foi aprovada e diversos programas passaram a contar com previsões de recursos à altura de suas necessidades. Aí se incluem o Programa Nacional de Imunização do SUS e os programas de fomento à produção artística previstos pelas Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo.

Sequer tinha assumido e o governo Lula já assegurava um carnaval mais seguro (com vacina) e mais animado (com dinheiro para quem faz cultura).

Depois veio a cerimônia de posse e foi tanta festa que a maior prévia deste carnaval ocorreu em Brasília.

Quem foi ou viu pela TV ficou perplexo de tanta beleza, a começar porque Bolsonaro não foi e uma comitiva para lá de especial entregou a faixa ao presidente Lula.

A festa se estendeu pelos dias seguintes pois, enquanto assumiam respectivos os ministérios, Marina Silva disse que a defesa do meio ambiente “não é uma forma de fazer, é uma forma de ser”; Silvio Almeida convocou cada um de nós para dizer que existimos e somos valiosos para o Estado brasileiro; Indígenas percorreram as salas da Funai com cantos; Margareth Menezes celebrou a recriação do Ministério da Cultura e também cantou “manda chamar os índios / manda chamar os negros / manda chamar os brancos / manda chamar o povo para o Rei Brasil renascer”.

O governo Lula inspira o carnaval. Mas além do que o governo pode e está fazendo pelo carnaval, o que o carnaval pode fazer pelo governo de esquerda recém-eleito?

Uma resposta à altura depende que superemos a lógica de que o carnaval representa uma mera comemoração ao fim do governo Bolsonaro. Seria insensato não comemorar a vitória, claro, mas permanecer nela não seria menos insensato.

Insensato porque a vitória eleitoral representa apenas um primeiro passo. Muitas lutas serão necessárias para auxiliar o governo na barganha com deputados e senadores pela aprovação de políticas que transformem o país e eliminem, de vez, as condições de eventual retorno da extrema-direita.

Insensato porque o que seria do carnaval sem um campo político para se confrontar senão uma folia que não força limites nem fabula outros possíveis?

O carnaval é excessivo, mas isso não significa que é mais, ou menos, intenso que a luta política. Seu excesso não é da ordem da grandeza, mas da alteridade, razão pela qual pode e deve ser pensado em complementaridade à luta política.

No carnaval de Recife (onde estou enquanto escrevo), conta-se que o carnaval de rua se adensou no momento imediatamente posterior a abolição da escravatura. Foi quando as classes populares ampliaram sua participação e passaram a ocupar, em definitivo, os espaços públicos.

Os primeiros clubes de frevo – criados ainda no final do século XIX – são ligados ao universo do trabalho como atestam os nomes em referência às respectivas profissões como o Clube dos Caiadores, dos Lenhadores, das Pás (carvoeiros), dos Vassourinhas (garis). Também os passos e coreografias do frevo contam com denominações inspiradas em instrumentos de trabalho como dobradiça, parafuso, tesoura, tramela, ferrolho e alicate.

A constituição dos trabalhadores como classe e a ascensão do movimento operário se deram em paralelo com a explosão dos carnavais de rua. Trabalho e carnaval se complementam porque a festa é a ocasião em que fatores exteriores ao trabalho produtivo – como o não-saber, a sorte, a chance, o instante, o acaso, a ginga, o drible – convergem e trazem à tona o fundo de imaginação que atiça a luta política.

Assim ocorre à medida que o corpo carnavalizado dança, samba, disfarça, transpira, revela, sapateia, sincopa e faz das ruas um laboratório de gestos a subverter a disciplina meramente maquinal do trabalho repetitivo. Quando os maracatus-nação denunciam a história única com a representação de cortes africanas e a evocação de reis, guerras e pátrias, em suma, de um passado silenciado e ausente. Com a transferência do carnaval dos bailes para a rua (também no final do século XIX) que inspirou a utilização de percussões e metais que forçaram as marchinhas para além de sua função meramente comunicativa – como escreveu o pesquisador Hugo Monteiro sobre o frevo, “rápido nos passos, veloz nos arranjos, quando executado durante as festas carnavalescas, o seu sentido denotativo se perde e entra em cena o seu sentido conotativo: espaço onde tudo é possível”.

O carnaval, portanto, como laço social fundado à revelia da autoridade, adianta, através da festa, imagens de um mundo por vir – e não por outra razão enfrenta reação. O fim da escravatura, e demais processos de transformação social, não se deram desacompanhados de políticas de controle dos que melhoravam um pouco de vida. Além da violência per se, dentre as estratégias de controle se inclui a desqualificação dessas camadas historicamente subalternizadas como produtoras de cultura, e por isso a repressão a elementos lúdicos e sagrados do cotidiano de pobres, negros e minorizados, como o carnaval.

Essa reação ao carnaval se encarnou em distintas formas ao longo da história. Nos combates às epidemias do século XIX, embora sob o propósito de melhorar as condições de saúde pública das cidades, o higienismo, enquanto doutrina sanitária, justificou a segregação urbana e serviu para tirar pobres das regiões centrais das cidades, bem como impedir a realização de carnavais em alguns desses lugares. Não muito diferente do que se viu no carnaval do ano passado (2022) em que o combate à pandemia justificou o cancelamento de desfiles e carnavais de rua, mas os eventos privados e pagos foram mantidos.

Atualmente, opera a lógica de mercantilização que submete o carnaval aos interesses de grandes marcas que passam a definir espaços, trajetos, cores, artistas, bebidas e muito mais. O poder público se torna um mero intermediador de negócios enquanto transfere a responsabilidade pela produção cultural para a iniciativa privada que, por sua vez, sujeita até mesmo grupos tradicionais que são domesticados pelo propósito de conseguirem patrocínio ao menos para terem o mínimo de infraestrutura para colocarem o bloco na rua.

Em paralelo à ascensão da extrema-direita, ganhou força a lógica da demonização que tem fundamento em discursos morais que criminalizam o carnaval, além de outras práticas como o funk e as religiões de matrizes africanas, ao censura-lo como uma festa ligada ao demônio. O que explica, todos devem lembrar, o ex-presidente Bolsonaro ter postado o vídeo do golden shower, durante o carnaval de 2019, com a mensagem de que “é isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro”.

Mesmo sob tamanhos ataques, ao longo dos próximos dias veremos desfilarem uma porção de blocos, troças, escolas de samba e outras manifestações carnavalescas que sobreviveram não só a dois anos sem carnaval por causa da pandemia, mas a quatro anos de governo Bolsonaro que tinha, como uma de suas principais bandeiras, a falência da cultura pelas mãos de secretários como Roberto Alvim, Regina Duarte e Mário Frias.

Se a esquerda pretende assegurar a vitória e mobilizar de vez os trabalhadores e a juventude em torno da agenda do presidente Lula, tem a oportunidade de recompor sua identidade política, ideológica e cultural se inspirando nos saberes e fazeres do carnaval e daqueles que o fazem a despeito das dificuldades.

Como um exercício de imaginação, quantas coisas um militante de esquerda não aprenderia em um bloco de carnaval? Andaria com o bloco, desviando-se dos cordões, cercadinhos vips e da polícia, e aprenderia que organizações coletivas (como partidos) são mais lentas, burocráticas, porém mais eficientes já que só a multidão é capaz de transpor as barricadas. E que isso só acontece porque, tal como deve ser na militância, a participação é inseparável da atuação na elaboração do coletivo e que os blocos só vão até o fim por causa deste compartilhar de tarefas (cantar em coro, compartilhar bebida, dar as mãos para fechar a rua, fazer cordão para a banda, doar água para os músicos, defender-se da polícia).

E os partidos? Tem muito que aprender com os blocos, clubes e escolas de samba que existem para além dos limites da festa e do mês de fevereiro. Neles há, pode visitá-los e conferir, um processo continuado de trabalho e pesquisa artística durante o ano inteiro e com relações construtivas e organizacionais com a comunidade (como diz Simas, “a escola de samba não existe porque vai desfilar, mas desfila porque existe”). Esse processo coletivo de construção de conhecimento instiga relações de pertencimentos e confere um campo de possibilidades para que os indivíduos inflexionem suas trajetórias de vida a partir e por meio da instituição. Se esquerda tem falado muito que as igrejas neopentecostais estabelecem redes de sociabilidade e fazem o “trabalho de base” que outrora coube aos partidos políticos (o que não deixa de ser verdade), há muito que aprender a esse respeito com a turma que estará nas ruas nos próximos dias.

Bom carnaval a todos!

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