Cultura

O mais recente escândalo do futebol argentino e a normalização do racismo

A vice-presidente da Argentina foi solidária à Enzo Fernández e demais atletas, mas o racismo no país vizinho tem raízes tão profundas quanto no Brasil.


Divulgação O mais recente escândalo do futebol argentino e a normalização do racismo
A vice-presidente argentina, Victoria Villarruel

O fim da década de 80 e início dos anos 90, marcado pela queda do Muro de Berlim, que traça uma linha na política e cultura ocidental trouxe à tona o conceito de Fim da História, a partir do artigo de Francis Fukuyama. Para o cientista político, aqueles eventos marcavam o fim da evolução sociocultural da humanidade a partir da expansão das democracias liberais e do livre capitalismo de mercado.

Claro, a própria dinâmica Ocidental demonstrou que era impossível que algo se desenvolvesse sem que os conflitos – portanto a História – seguissem seu desenvolvimento e o agir nela é o que dita, até certo ponto, qual a capacidade humana na denominada luta de classes.

Na América Latina, os governos de extrema-direita têm se valido deste conceito de Fim da História, mas a partir de uma nova perspectiva. É o apagar histórico, a supressão dos fatos que ocorreram na realidade e sua substituição por uma espécie de engodo que deixaria governos autoritários mundo à fora enojados. Fazer valer sua opaca visão de mundo a partir de um suposto terror.

Segue igual, mas por quê?

Desta vez, um novo caso de racismo por parte dos argentinos suscita a discussão. Após a conquista da Copa América, atletas cantavam músicas no ônibus e o jogador Enzo Fernández, do Chelsea, gravava. Neste momento, estes mesmos companheiros de time começavam a cantar uma música feita pela torcida, na Copa do Mundo de 2022, na tentativa de insultar Mbappé. Você pode rever a letra aqui.

Mesmo que tenha parado de filmar, as imagens não passaram desapercebidas e uma discussão enorme surgiu. Atletas negros, como Wesley Fofana, companheiro de time de Enzo chegou a compartilhar a postagem e escreveu “Futebol em 2024: racismo sem remorso”.

Enzo foi às redes sociais, escrever um pedido de desculpas para inglês ler. A FFF afirmou processar a Federação Argentina. A Fifa entrou com um processo disciplinar para apurar o fato. Messi, uma vez mais, calou-se.

Agora, a vice-presidente da Argentina Victoria Vilarruel foi às redes sociais defender o ato praticado pelos argentinos após a Copa América. Membro do partido de extrema-direita La Libertad Avanza, ela disse que “nenhum país colonialista vai nos amedrontar por uma canção de estádios, nem por dizer verdades que não querem admitir”. Veja:

Vale ressaltar: no Brasil, não estamos vivendo a democracia racial, tão propagada por Gilberto Freyre e seus pares. O país que mais mata pessoas negras segue a passos largos no intuito de dirimir cada vez mais qualquer resquício de organização negra, apesar de sua teimosia em se manter.

Agora, você já se questionou o porque de não haver atletas negros na seleção da Argentina, partindo da perspectiva que o processo de escravização e tentativa de destruição do continente Africano foi um processo universal no Ocidente?

Fatos históricos

De acordo com o historiador Felipe Pigna, em uma entrevista ao periódico El País, as Guerras da Independência (1810-1818), Guerras Civis (1814-1853) e a Guerra do Paraguai (1864-1870) foram alguns dos métodos utilizados pelos argentinos para extinguir as os homens negros do país, utilizadas como “bucha de canhão”, seres dispensáveis à nação. Te lembrou algo?

Outro fator levantado pelo historiador demonstra que o impeditivo ao casamento entre pessoas negras na Argentina afetou a natalidade do povo. O censo de 1810 de Buenos Aires, demonstra que apesar da proximidade entre mulheres negras e brancas em idade fértil (15 a 44 anos), ser próxima (59 e 56%, respectivamente, para cada mil mulheres, 400 crianças vinham das brancas e apenas 256 nasceriam de mulheres negras. Ao mesmo passo, a taxa de mortalidade se invertia e, em 1828, a cada mil crianças, morreram 442 meninos negros e 376 meninas negras, contra 246 meninos brancos e 251 meninas brancas.

O aumento da imigração europeia entre 1880 e 1900 – como desejava João Batista de Lacerda para o Brasil no Congresso Universal das Raças em 1911 - foi outro fator importante. Foram quase um milhão de habitantes provenientes da imigração, portanto, como aponta a antropóloga María Belén Zaninovich no El País, “a pele negra é um dos traços que mais rapidamente branqueia”.

Ọ̀nà

“O esquema de relações raciais no país baseava-se na supremacia do descendente branco europeu que se autoconstituiu numa pretensa elite; um supremacismo tão bem estruturado a ponto de ter podido permanecer livre de um desafio radical durante todas as transformações sociopolíticas pelas quais tem passado a nação”.

A citação se encontra na página 82 de “O Quilombismo”, de um dos principais pensadores africano-brasileiros, Abdias Nascimento. A resposta para os próximos passos foi descrita pelo africano em terras piauienses, Nego Bispo, o principal pensador africano-brasileiro no livro “A terra dá, a terra quer”.

“Chegamos como habitantes, em qualquer ambiente, e vamos nos transformando em compartilhantes. No quilombo, somos compartilhantes, desde que tenhamos nascido aqui ou que tenhamos uma relação de pertencimento. E quando digo da relação de pertencimento com o quilombo, falo de uma relação com o ambiente como um todo, com os animais, com as plantas. Somos apenas moradores quando não temos uma relação de pertencimento, quando estamos aqui, mas partimos na primeira oportunidade que tivermos”.

 Mestre Nego Bispo entende que, para o povo preto, é necessário ser um compartilhante de sua comunidade  


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